São Paulo, quarta-feira, 13 de junho de 2001

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MARCELO COELHO

O racionamento é uma boa oportunidade para ser feliz

Devo estar louco ou pelo menos com sintomas graves de obsessão e paranóia: não consigo me livrar do assunto. Escrevo mais uma vez sobre o apagão. É que fatos interessantes a esse respeito não param de acontecer.
Numa revista semanal, vi o seguinte anúncio do governo: "Regras do racionamento residencial: mudamos para melhor". Logo abaixo, eles explicam que "o plano de economia de energia ganhou novas medidas. E você ganhou mais oportunidades de ajudar o país a vencer esse desafio. Veja as novidades e saiba como contribuir".
Daí o anúncio explica o que acontece com as diferentes faixas de consumo, destacando o "bônus" que recebe quem economiza e as "consequências" que pesarão sobre quem não cumprir as metas.
O espantoso desse anúncio é que apresenta como "oportunidade imperdível", como boa notícia, as restrições impostas ao cidadão. Nenhum apelo do tipo "precisamos de seu apoio". Nenhum tom de seriedade, nenhuma lembrança de que a situação é grave.
Ao contrário, tudo se passa como se tivéssemos uma liquidação inesperada nas Casas Bahia ou uma prorrogação da quinzena de estofados no Carrefour. O apagão foi inventado para me deixar mais feliz.
No mesmo anúncio, há um slogan engraçado: "Poupe energia. Bom para o Brasil. Melhor para você". Embora venha junto o emblema de uma tomada dando um sorriso, no estilo da carinha "smile", a frase adquire um tom bastante sinistro. Claro que não é "melhor para mim" poupar energia, no sentido de que é "melhor para mim" tirar férias ou fazer esportes. O sentido é de ameaça: "Melhor vocês irem parando com isso, senão...".
Mas a tomadinha sorridente e o estilo "semana de ofertas" do anúncio também têm razão de ser. De certo modo, as pessoas se sentem mais felizes mesmo, pois nunca foram feitos tantos elogios ao brasileiro comum. A economia espontânea de energia superou as expectativas, pelo menos no Sudeste. (Conclusão implícita: nós, paulistas, somos mais civilizados.) Todos, afinal, se engajam no racionamento.
Não sei o que há de extraordinário nisso. Houve ameaças tremendas. A população, na dúvida, obedece. Como recompensa, é elogiada por seu civismo, por seu espírito de colaboração, por seu empenho patriótico. Parece-me sempre estar, nas entrelinhas, o seguinte comentário: "Quem diria, hein? Esse povinho ignorante e malandro até que saiu melhor do que a encomenda...".
Não me esqueço de que, depois do Plano Cruzado, depois de uma série de elogios à mobilização cívica dos brasileiros, um líder empresarial tomou a palavra para explicar por que o plano não tinha dado certo: "O povo brasileiro, vocês sabem, é muito consumista...". Isso quando muita gente, pela primeira vez na vida, conseguia comprar uma geladeira.
Mas voltemos às proezas do apagão voluntário. Uma coisa é certa: mesmo antes do calendário oficial, todo mundo começou a economizar -ninguém seria multado se continuasse a gastar energia, mas o racionamento, na prática, já estava funcionando.
O que me assusta um pouco, nessas circunstâncias, é o poder incomparável da televisão. Os noticiários não se limitaram a falar das medidas do governo e das ameaças reais de um colapso energético. O procedimento de persuasão foi bem mais direto e, ao mesmo tempo, sutil.
Quem não viu os telejornais mostrando as medidas exemplares que uma "típica família de classe média" já vai começando a tomar? "Dona Solange modificou a rotina da família. Agora, só há uma televisão ligada..." -e a câmera mostra a família vendo televisão. "O sr. Pereira aposentou o barbeador elétrico..." -e lá está o sr. Pereira com um Prestobarba.
Isso é o de menos. Houve cenas primorosas. Como a de uma advogada instruindo a empregada doméstica a não usar mais a máquina de lavar. "Agora vamos lavar isso aqui na mão, está bem, Deuzinete?" E a empregada, de costas, faz que sim. Depois, a câmera oculta denuncia: ela continuou usando a máquina.
Não vou dizer que isso é totalitarismo, nem esbravejar demais. Afinal, a TV não está mobilizando os espectadores para sair matando as "raças subalternas" ou depredando estabelecimentos comerciais. Mas há um toque totalitário, sim, nessa exemplificação modelar de simpáticas famílias procedendo à economia de luz com ordem e método, em clima de perfeito consenso.
A felicidade do apagão tem muito a ver com isso: provém de estarmos mergulhados na mesma corrente, de sermos dóceis objetos de uma mobilização "do bem", de vermos na tela "uma casa igualzinha à nossa", de saber que dona Solange tem a mesma marca de secador de cabelo, que o sr. Pereira está usando Prestobarba.
E é sempre um sinal de solidariedade e patriotismo o fato de tanto eu quanto a minha empregada passarmos a lavar tudo "na mão".



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