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MARCELO COELHO
O racionamento é uma boa oportunidade para ser feliz
Devo estar louco ou pelo
menos com sintomas graves
de obsessão e paranóia: não consigo me livrar do assunto. Escrevo
mais uma vez sobre o apagão. É
que fatos interessantes a esse respeito não param de acontecer.
Numa revista semanal, vi o seguinte anúncio do governo: "Regras do racionamento residencial:
mudamos para melhor". Logo
abaixo, eles explicam que "o plano de economia de energia ganhou novas medidas. E você ganhou mais oportunidades de ajudar o país a vencer esse desafio.
Veja as novidades e saiba como
contribuir".
Daí o anúncio explica o que
acontece com as diferentes faixas
de consumo, destacando o "bônus" que recebe quem economiza
e as "consequências" que pesarão
sobre quem não cumprir as metas.
O espantoso desse anúncio é
que apresenta como "oportunidade imperdível", como boa notícia,
as restrições impostas ao cidadão.
Nenhum apelo do tipo "precisamos de seu apoio". Nenhum tom
de seriedade, nenhuma lembrança de que a situação é grave.
Ao contrário, tudo se passa como se tivéssemos uma liquidação
inesperada nas Casas Bahia ou
uma prorrogação da quinzena de
estofados no Carrefour. O apagão
foi inventado para me deixar
mais feliz.
No mesmo anúncio, há um slogan engraçado: "Poupe energia.
Bom para o Brasil. Melhor para
você". Embora venha junto o emblema de uma tomada dando um
sorriso, no estilo da carinha "smile", a frase adquire um tom bastante sinistro. Claro que não é
"melhor para mim" poupar energia, no sentido de que é "melhor
para mim" tirar férias ou fazer esportes. O sentido é de ameaça:
"Melhor vocês irem parando com
isso, senão...".
Mas a tomadinha sorridente e o
estilo "semana de ofertas" do
anúncio também têm razão de
ser. De certo modo, as pessoas se
sentem mais felizes mesmo, pois
nunca foram feitos tantos elogios
ao brasileiro comum. A economia
espontânea de energia superou as
expectativas, pelo menos no Sudeste. (Conclusão implícita: nós,
paulistas, somos mais civilizados.) Todos, afinal, se engajam no
racionamento.
Não sei o que há de extraordinário nisso. Houve ameaças tremendas. A população, na dúvida,
obedece. Como recompensa, é elogiada por seu civismo, por seu espírito de colaboração, por seu empenho patriótico. Parece-me sempre estar, nas entrelinhas, o seguinte comentário: "Quem diria,
hein? Esse povinho ignorante e
malandro até que saiu melhor do
que a encomenda...".
Não me esqueço de que, depois
do Plano Cruzado, depois de uma
série de elogios à mobilização cívica dos brasileiros, um líder empresarial tomou a palavra para
explicar por que o plano não tinha dado certo: "O povo brasileiro, vocês sabem, é muito consumista...". Isso quando muita gente, pela primeira vez na vida, conseguia comprar uma geladeira.
Mas voltemos às proezas do
apagão voluntário. Uma coisa é
certa: mesmo antes do calendário
oficial, todo mundo começou a
economizar -ninguém seria
multado se continuasse a gastar
energia, mas o racionamento, na
prática, já estava funcionando.
O que me assusta um pouco,
nessas circunstâncias, é o poder
incomparável da televisão. Os noticiários não se limitaram a falar
das medidas do governo e das
ameaças reais de um colapso
energético. O procedimento de
persuasão foi bem mais direto e,
ao mesmo tempo, sutil.
Quem não viu os telejornais
mostrando as medidas exemplares que uma "típica família de
classe média" já vai começando a
tomar? "Dona Solange modificou
a rotina da família. Agora, só há
uma televisão ligada..." -e a câmera mostra a família vendo televisão. "O sr. Pereira aposentou o
barbeador elétrico..." -e lá está o
sr. Pereira com um Prestobarba.
Isso é o de menos. Houve cenas
primorosas. Como a de uma advogada instruindo a empregada
doméstica a não usar mais a máquina de lavar. "Agora vamos lavar isso aqui na mão, está bem,
Deuzinete?" E a empregada, de
costas, faz que sim. Depois, a câmera oculta denuncia: ela continuou usando a máquina.
Não vou dizer que isso é totalitarismo, nem esbravejar demais.
Afinal, a TV não está mobilizando os espectadores para sair matando as "raças subalternas" ou
depredando estabelecimentos comerciais. Mas há um toque totalitário, sim, nessa exemplificação
modelar de simpáticas famílias
procedendo à economia de luz
com ordem e método, em clima
de perfeito consenso.
A felicidade do apagão tem
muito a ver com isso: provém de
estarmos mergulhados na mesma
corrente, de sermos dóceis objetos
de uma mobilização "do bem", de
vermos na tela "uma casa igualzinha à nossa", de saber que dona
Solange tem a mesma marca de
secador de cabelo, que o sr. Pereira está usando Prestobarba.
E é sempre um sinal de solidariedade e patriotismo o fato de
tanto eu quanto a minha empregada passarmos a lavar tudo "na
mão".
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