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CINEMA
Documentário etnográfico feito em 1916 abre hoje Festival Internacional de Cinema Ambiental, na Cidade de Goiás
Goiás vê o raro "Rituais e Festas Bororo"
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
No ponto em que o rio São Lourenço lambe a terra dos índios bororo, no Mato Grosso, os homens
da tribo atracam o barco, entorpecem os peixes com toxina extraída da vegetação timbó, lançam a rede e, ao puxá-la de volta,
mordem os pescados que somente à custa se deixaram vencer.
É o início da Jurê, festa da fartura que o major Luiz Thomaz Reis
(1878-1940) documentou em 1916
e 1917, em "Rituais e Festas Bororo". Com uma exibição pública,
hoje, na Cidade de Goiás (GO), o
filme inaugura a terceira edição
do Festival Internacional de Cinema Ambiental, em que 28 títulos
de 17 países competirão até domingo pelo Prêmio Cora Coralina
(R$ 50 mil).
A pescaria bororo objetiva acumular provisões para o ritual funerário que virá a seguir, consumindo longo tempo de dedicação
da tribo às danças específicas para
a ocasião do enterro.
Tais danças requerem corpos
ora pintados com urucum, ora
vestidos com túnicas de palha. Há
momentos em que os homens
dançam sozinhos e outros em que
as mulheres aderem ao ritual.
Sempre dançando e cantando -e
sempre diante da câmera de
Reis- espantam-se os maus espíritos e simula-se uma briga de
onças com índios caracterizados.
"Trata-se de um documento
único. Esse filme é anterior a "Nanook", que Flaherty fez em 1922 e
que era considerado o primeiro
documentário etnográfico do
mundo", diz o professor Fernando de Tacca, 46, que chefia o departamento de Multimeios da
Unicamp e desenvolveu tese de
doutorado -"Narrativas Etnográficas e Estratégicas- sobre a
construção da imagem do índio
na comissão Rondon.
Nas comissões telegráficas de
Rondon para a "ocupação do
Oeste brasileiro por meio das comunicações", o major Reis encarregou-se da seção de Cinematografia e Fotografia. Adquiriu os
mais modernos equipamentos cinematográficos à venda na Europa. E tornou-se "o olhar que elege,
recorta, edita a ação, o responsável pela imagética da comissão
Rondon", como observa Tacca.
Os méritos de "Rituais e Festas
Bororo" não se assentam exclusivamente em seu pioneirismo. As
primeiras filmagens cinematográficas no Brasil haviam acontecido apenas 18 anos antes. Mas o
cineasta Reis lança mão de recursos de filmagem e edição surpreendentemente modernos.
"Ele tenta criar uma linearidade
no ritual, às vezes invertendo sequências de imagens para criar
uma dramaticidade narrativa.
Reis brinca com o extra quadro
(ao inserir imagens que deixam
evidente a presença de alguém na
cena, mas fora do quadro), afasta-se para um "campo de observação
neutro" nos rituais propriamente
ditos e preanuncia visualmente a
sequência seguinte, antes mesmo
que ela seja intercalada pelo cartão de legendas, próprio dos filmes mudos", diz Tacca.
Admirador da filmografia de
Reis, que inclui títulos como "Sertões de Mato Grosso" (seu primeiro filme, de 1915), "Parimã",
"Inspetoria E. de Fronteiras" e o
longa "Ao Redor do Brasil", o curador do acervo da Cinemateca
Brasileira, Carlos Roberto Souza,
define o cineasta como "um realizador intuitivo, capaz de uma
abordagem antropológica sem
distanciamento ou folclorismos".
A Cinemateca Brasileira recuperou os originais em nitrato de
"Rituais e Festas Bororo" e dos
demais filmes de Reis, que hoje
pertencem ao acervo do Museu
do Índio, no Rio.
O público paulistano terá uma
chance de assisti-lo no próximo
mês de setembro, quando o professor Fernando de Tacca lançará
seu livro (editora Papirus), com
exibição dos cinco títulos estudados -além de "Rituais...", "Ronuro, Selvas do Xingu", "Os Carajás", "Inspetoria E. de Fronteiras"
e "Viagem ao Roraimã".
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