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São Paulo, sexta-feira, 13 de junho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Brevíssima história dos vices na República

Deve haver por aí algum livro, provavelmente um tratado, um ensaio ou mesmo uma simples obra de consulta sobre os vice-presidentes na história do Brasil. Quebra-galho republicano e constitucional, a necessidade de um substituto provisório ou definitivo do chefe executivo da Nação entrou agora em discussão, uma vez que o atual vice, recrutado eleitoralmente em outro partido que não o vitorioso nas urnas do ano passado, tem algumas idéias e talvez todas as idéias diferenciadas das do titular do cargo, este sim consagrado limpidamente pela grande maioria do povo.
Não serei eu, que nada entendo de política e, pensando bem, nada entendo de nada, que tentaria explicar ou justificar a posição divergente do atual vice em relação à política econômica do governo. Afinal, como quase todos os brasileiros, conhecia de longa data o Lula, gostava dele e ainda gosto, acho que é o primeiro presidente que tem cheiro, layout, gosto e gesto de povo. Do Zé Alencar conhecia apenas o quase-homônimo, cujo busto, lá na Academia Brasileira de Letras, fica em cima de minha cabeça no auditório onde realizamos nossas conferências.
Mas, sempre que há eleições, estranho o recurso calhorda de fazer alianças com outros partidos. Tal prática é natural e justa no seio do Congresso para determinadas votações. Darei um exemplo radical: o país é invadido por uma potência estrangeira, o Congresso precisa aprovar a declaração de guerra, o partido que está no poder não tem maioria parlamentar, é necessária a formação de alianças para o fim exclusivo da defesa nacional. Com mil e uma variantes menos dramáticas, um partido que goste do amarelo pode se aliar a outro partido que deteste o amarelo. Até o dr. Watson acharia isso elementar.
A história da República é bem acidentada na questão. No Império, não havia vices, mas aceitava-se a linha dinástica da sucessão. Mesmo assim, em casos complicados, como o da Abolição, o titular viajou para deixar o abacaxi nas mãos da regente. O imperador não contrariaria diretamente a sólida estrutura escravagista que, queiram ou não os historiadores, sustentava o trono.
Logo nos primeiros vagidos da República, tivemos o caso de Deodoro e Floriano, ambos marechais e ambos alagoanos. Pouco depois, um outro vice, aproveitando uma doença temporária do titular, mudou a sede do poder, que passou do Itamarati, na rua Larga, para o Palácio do Catete. Mesmo nos regimes de força, que foram vários e longos, o vice era uma figura suspeita: Pedro Aleixo foi impedido de substituir Costa e Silva porque era um civil e um liberal; recorreu-se então a uma Junta Militar para tapar o buraco.
Aureliano trombou com Figueiredo. A dicotomia civil-militar mais uma vez impediu as boas relações e, embora Aureliano tenha se portado razoavelmente nas oportunidades em que ocupou o cargo presidencial, sofria severas restrições do general. A truculência do regime impedia bate-bocas públicos, mas, se acontecesse alguma coisa de grave com Figueiredo que necessitasse de uma substituição definitiva, certamente haveria uma nova quebra na hierarquia do poder.
O caso de João Goulart, vice duas vezes, foi típico. JK o enquadrou matreiramente, dando-lhe relativa autonomia em determinadas zonas do governo -e bota zona nisso. Jânio nem teve tempo para gostar ou desgostar do seu vice, o mesmo Goulart. Deu no que deu.
Com Sarney a coisa correu bem, quer dizer, correu mal: Tancredo nem tomou posse, o abacaxi caiu por gravidade no vice, mas, se não houvesse o cargo, o regime autoritário duraria mais alguns anos. Bem verdade que Sarney procurou não fazer marola, filiou-se ao mesmo partido de Tancredo antes das eleições e aceitou governar com a equipe que não nomeara. Teve problemas sérios com Ulisses Guimarães, mas o barco andou dentro dos trilhos democráticos.
Como bom mineiro, Itamar Franco gosta de bondes e pegou um andando, com o impedimento de Collor. As circunstâncias o liberaram de seguir a linha extravagante adotada pelo titular. E Marco Maciel, embora pertencesse a um partido diametralmente oposto ao de Fernando Henrique Cardoso, não precisou falar nem fazer nada, pois FHC mudou tanto que, no varejo da administração pública, parecia ser do mesmo partido do seu vice.
Assim chegamos a Lula e a Zé Alencar. O primeiro precisava do segundo para convencer o eleitorado adversário, os empresários, o capital estrangeiro, os que ameaçavam emigrar caso o PT chegasse ao poder. E Alencar jamais seria vice de qualquer coisa se contasse apenas com os próprios recursos partidários. O casamento de contrários teria de dar no que está dando. Ainda bem que não chega a haver crise. A divergência é setorizada e ainda não passou do plano público para o pessoal.
Mas... mas, se uma doença, um impedimento qualquer obrigar à sucessão constitucional, de duas, uma: ou teremos, aí sim, uma gravíssima crise institucional, ou o rumo do governo mudaria substancialmente de eixo e os eleitores do PT ficariam a ver navios no lago de Brasília.


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