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CARLOS HEITOR CONY
Brevíssima história dos vices na República
Deve haver por aí algum livro, provavelmente um tratado, um ensaio ou mesmo uma
simples obra de consulta sobre os
vice-presidentes na história do
Brasil. Quebra-galho republicano
e constitucional, a necessidade de
um substituto provisório ou definitivo do chefe executivo da Nação entrou agora em discussão,
uma vez que o atual vice, recrutado eleitoralmente em outro partido que não o vitorioso nas urnas
do ano passado, tem algumas
idéias e talvez todas as idéias diferenciadas das do titular do cargo,
este sim consagrado limpidamente pela grande maioria do povo.
Não serei eu, que nada entendo
de política e, pensando bem, nada
entendo de nada, que tentaria explicar ou justificar a posição divergente do atual vice em relação
à política econômica do governo.
Afinal, como quase todos os brasileiros, conhecia de longa data o
Lula, gostava dele e ainda gosto,
acho que é o primeiro presidente
que tem cheiro, layout, gosto e
gesto de povo. Do Zé Alencar conhecia apenas o quase-homônimo, cujo busto, lá na Academia
Brasileira de Letras, fica em cima
de minha cabeça no auditório onde realizamos nossas conferências.
Mas, sempre que há eleições, estranho o recurso calhorda de fazer alianças com outros partidos.
Tal prática é natural e justa no
seio do Congresso para determinadas votações. Darei um exemplo radical: o país é invadido por
uma potência estrangeira, o Congresso precisa aprovar a declaração de guerra, o partido que está
no poder não tem maioria parlamentar, é necessária a formação
de alianças para o fim exclusivo
da defesa nacional. Com mil e
uma variantes menos dramáticas, um partido que goste do
amarelo pode se aliar a outro
partido que deteste o amarelo.
Até o dr. Watson acharia isso elementar.
A história da República é bem
acidentada na questão. No Império, não havia vices, mas aceitava-se a linha dinástica da sucessão. Mesmo assim, em casos complicados, como o da Abolição, o
titular viajou para deixar o abacaxi nas mãos da regente. O imperador não contrariaria diretamente a sólida estrutura escravagista que, queiram ou não os historiadores, sustentava o trono.
Logo nos primeiros vagidos da
República, tivemos o caso de Deodoro e Floriano, ambos marechais e ambos alagoanos. Pouco
depois, um outro vice, aproveitando uma doença temporária do
titular, mudou a sede do poder,
que passou do Itamarati, na rua
Larga, para o Palácio do Catete.
Mesmo nos regimes de força, que
foram vários e longos, o vice era
uma figura suspeita: Pedro Aleixo
foi impedido de substituir Costa e
Silva porque era um civil e um liberal; recorreu-se então a uma
Junta Militar para tapar o buraco.
Aureliano trombou com Figueiredo. A dicotomia civil-militar
mais uma vez impediu as boas relações e, embora Aureliano tenha
se portado razoavelmente nas
oportunidades em que ocupou o
cargo presidencial, sofria severas
restrições do general. A truculência do regime impedia bate-bocas
públicos, mas, se acontecesse alguma coisa de grave com Figueiredo que necessitasse de uma
substituição definitiva, certamente haveria uma nova quebra na
hierarquia do poder.
O caso de João Goulart, vice
duas vezes, foi típico. JK o enquadrou matreiramente, dando-lhe
relativa autonomia em determinadas zonas do governo -e bota
zona nisso. Jânio nem teve tempo
para gostar ou desgostar do seu
vice, o mesmo Goulart. Deu no
que deu.
Com Sarney a coisa correu bem,
quer dizer, correu mal: Tancredo
nem tomou posse, o abacaxi caiu
por gravidade no vice, mas, se
não houvesse o cargo, o regime
autoritário duraria mais alguns
anos. Bem verdade que Sarney
procurou não fazer marola, filiou-se ao mesmo partido de Tancredo antes das eleições e aceitou
governar com a equipe que não
nomeara. Teve problemas sérios
com Ulisses Guimarães, mas o
barco andou dentro dos trilhos
democráticos.
Como bom mineiro, Itamar
Franco gosta de bondes e pegou
um andando, com o impedimento de Collor. As circunstâncias o
liberaram de seguir a linha extravagante adotada pelo titular. E
Marco Maciel, embora pertencesse a um partido diametralmente
oposto ao de Fernando Henrique
Cardoso, não precisou falar nem
fazer nada, pois FHC mudou tanto que, no varejo da administração pública, parecia ser do mesmo partido do seu vice.
Assim chegamos a Lula e a Zé
Alencar. O primeiro precisava do
segundo para convencer o eleitorado adversário, os empresários,
o capital estrangeiro, os que
ameaçavam emigrar caso o PT
chegasse ao poder. E Alencar jamais seria vice de qualquer coisa
se contasse apenas com os próprios recursos partidários. O casamento de contrários teria de dar
no que está dando. Ainda bem
que não chega a haver crise. A divergência é setorizada e ainda
não passou do plano público para
o pessoal.
Mas... mas, se uma doença, um
impedimento qualquer obrigar à
sucessão constitucional, de duas,
uma: ou teremos, aí sim, uma
gravíssima crise institucional, ou
o rumo do governo mudaria substancialmente de eixo e os eleitores
do PT ficariam a ver navios no lago de Brasília.
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