São Paulo, sábado, 13 de junho de 1998

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A Farra da Copa, provão e a politização da vida

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Espécie de caricatura dos traços nacionais, nesta empolgação pelo Mundial de Futebol, a imprensa criou uma situação sui generis na própria imprensa. Se antes os jornais abriam mão de sua marca orgânica e universal pulverizando-se em caderninhos segmentados e irrelevantes, agora foram mais longe e estabeleceram uma divisão nuclear, mais profunda.
O jornalismo de saturação agora adotado, apelidado de Farra da Copa, fraturou nossos jornais em dois. De um lado ficou o oba-oba, a badalação, com as doses maciças de palpitação e palpitismo. No outro ficamos nós, os condenados a acompanhar as chatices da vida nacional -os sem-credencial, os sem-graça e sem acesso à grande ribalta lá nas bandas de Asterix.
Estamos aqui numa espécie de banco de reserva, indispensável limbo que tanto revolta o atacante Edmundo. Esquema de segurança, opção para eventuais emergências (Deus nos livre!) de que a vida nacional torne-se mais importante do que aquilo que rola nos gramados, bistrôs e butiques gaulesas.
Destarte (como se deve dizer nestas sobras de jornal repentinamente solenizadas) podemos flagrar incidentes e fenômenos interessantes. Magicamente cessaram as invasões de terras e repartições, evaporaram-se as notícias sobre saques no Nordeste. Sem que ocorressem alterações substanciais em nosso panorama social ou climático.
A consumação da chapa Lula-Brizola também merece destaque. O gaúcho não afetará minimamente as sondagens eleitorais (Lerner, Garotinho e Rossi que o digam), mas contém um lance biográfico que não se deve desprezar.
Leonel Brizola está no páreo há quase meio século, é a mais longa carreira de aspirante à Presidência da história republicana. Eleito, serei um dos que assinará uma petição ao cabeça de chapa para se licenciar durante uma semana, sob qualquer pretexto e, assim, permitir ao vice o acesso à rampa do Planalto e o direito a uma foto, mesmo Polaroid, com a ambicionada faixa. Talvez sossegue e deixe de dar "carrinhos" naqueles que lhe estão próximos.
Neste antípoda da Torre Eiffel, relevante foi o Exame Nacional de Cursos, alcunhado de provão, cuja terceira edição realizou-se no último domingo. É uma das mais importantes iniciativas do Ministério da Educação para requalificar e sanear o ensino superior. Sobretudo no tocante à indústria do diploma -essa jóia da iniciativa privada-, que vem colocando no mercado de trabalho algumas legiões de jovens despreparados, cultural e tecnicamente, para exercer as respectivas profissões.
O provão é uma forma engenhosa de avaliar instituições, docentes e currículos por meio do desempenho dos formandos. Tão evidentes são seus méritos que o comparecimento foi de 92,3% (dados desta Folha, 10/6/98, p. 3-5), não obstante a algazarra dos anos anteriores armada pelos militantes do PSTU. A adesão só não foi maior por causa de uma decisão judicial evidentemente politizada, lavrada por um juiz federal de Belo Horizonte, que excluiu da avaliação os 3.845 alunos de Belo Horizonte (felizmente cassada na quarta-feira pelo TRF de Brasília).
Participei da Comissão que, a convite do MEC, elaborou as bases conceituais sobre as quais os especialistas deveriam montar os questionários para os formandos na área de jornalismo (pela primeira vez incluída no provão). Sete profissionais e professores de vários pontos do país com as mais variadas formações políticas, um deles da diretoria da Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas, ligada à CUT) e dois outros, independentes, também indicados pela mesma federação.
Foi uma das mais empolgantes tarefas cívicas nas quais me envolvi não apenas porque estávamos ajudando a criar as bases para uma revisão curricular com implicações no próprio exercício profissional, mas também pela convergência e entrosamento daquele grupo tão díspar e tão igual.
No meio do caminho, o inevitável radicalismo: acusada de aderir a um projeto de origem governamental, a diretoria da Fenaj, a despeito da opinião do seu presidente, foi obrigada a recuar e retirar seu apoio ao provão. O companheiro dirigente da Federação, constrangido e disciplinado, afastou-se da Comissão, mas os dois outros, embora "desindicados", continuaram contribuindo ativamente com a sua competência e tirocínio para a conclusão do trabalho.
Há dias, uma das estagiárias de um dos projetos com o qual estou envolvido, estudante de jornalismo numa escola federal, declarou-se a favor do juiz mineiro, porque o provão daria muita ênfase à questão da ética jornalística. Como os professores estavam em greve há dois meses, ela sentia-se prejudicada porque neste ano praticamente não teve aulas na disciplina. Ainda não diplomada, a jovem já tem a chama sagrada da profissional, mas deu-me o argumento definitivo a favor do provão: alguma coisa está muito errada quando um centro formador de jornalistas somente ensina ética nos dois últimos semestres. CQD. Como queríamos demonstrar.
O provão pegou, não adianta espernear. Faz parte de um vasto processo de mudanças, por meio de melhorias e empenhos, que independe das forças que estejam no poder. A auto-exclusão "partisan" e partidária cria bolsões anti-sociais e antidemocráticos que prejudicam a criação de uma consciência participativa e uma cidadania ativa. Sem elas sociedade alguma pode evoluir.
A luta contra a violência e a droga, a defesa dos direitos humanos, a reforma agrária, a preservação do meio-ambiente e a difusão da cultura humanista são algumas frentes imperiosamente amplas. Apolíticas e suprapartidárias. Não comportam dissidências, desvios, nem deformações gremiais porque se baseiam em valores permanentes, intocáveis.
Na campanha do Tri, muitos recusaram-se a torcer pelo Brasil para não prestigiar o regime militar. Hoje, neste processo de construção democrática, a paixão pelo futebol despolitizou-se: impensável se distanciar do sonho do Penta, só porque o otimismo pode favorecer a candidatura FHC.
Prova é a foto publicada nos jornais na última quinta, em que o comando da frente PT-PDT assistia ao jogo contra a Escócia, envergando a camisa da seleção nacional. Lula muito à vontade, José Dirceu nem tanto, Brizola constrangido com a fatiota que estreava e Marta Suplicy sempre charmosa. Único a destoar, o senador Requião. Certamente porque não havia no estoque da casa uma camisa para esconder suas banhas. Melhor essa hipótese do que acreditar na versão de que prefira os escoceses.



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