São Paulo, sexta-feira, 13 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Fora do gueto

Fábio Mergulhão/Divulgação
O DJ Kid Koala, que mistura rap com jazz


Novas tecnologias ajudam o rap a se encontrar com a vanguarda da eletrônica

DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL

Muito além do "yo!" e das batidas quebradas, da ode à grana, ao poder e ao sexo, do discurso engajado e do denuncismo social, um outro tipo de rap vem tomando forma desde a virada do século. Underground, indie, avant hip hop. Chame como queira, o que parece indiscutível é que o hip hop está virando o disco.
Se já vinha sendo consumido por jovens de classe média e alta desde meados da década de 90, foi só de uns dois anos para cá que o gênero invadiu de vez as pistas de dança da elite e a coleção de discos de fãs de dance, rock e... jazz.
Alguns dos culpados atendem pelos nomes de El-P, The Streets, Clouddead, RJD2 e Dizzee Rascal. São rappers -e não raro produtores- que abraçam as novas tecnologias e, como bem fazia o rap em seus primeiros anos de vida, passam a borracha em todo e qualquer tipo de gênero no qual se pretenda enquadrá-los.
"O hip hop é a nova IDM", crava o norte-americano Beans, ex-Antipop Consortium e um dos escalados para se apresentar na primeira noite do festival de música avançada Sónar, que acontece em setembro em São Paulo.
Por IDM, a propósito, entenda-se: Inteligent Dance Music, vertente minimalista e pouco dançante da eletrônica, identificada com os artistas do cabeçudíssimo selo inglês Warp.
Sim, o mesmo Warp de Aphex Twin e Autechre agora aposta suas fichas no rap e incluiu em seu catálogo de artistas, além do próprio Beans, outros nomes da nova mistura de rap com "música moderninha", como Prefuse 73 e Prince Po, ambos também escalados para tocar em São Paulo.
Se não bastasse, a gravadora de IDM criou ainda um subselo, batizado de Lex, pelo qual lança os trabalhos de gente como Jemini, Lost Prophets e Danger Mouse. Este último, o sagaz encrenqueiro que decidiu adicionar os vocais do "Black Album" de Jay-Z ao "White Album" dos Beatles, e daí tirar o seu "Grey Album" -logo recolhido das lojas quando a EMI ameaçou processar o artista.
Beatles, tecno, camadas sobre camadas de ruídos, o fato é que para além dos 50 Cent e Eminems da vida, o rap vem recebendo novas lufadas de oxigênio. E o que é melhor, devolvendo o "favor" para o público da eletrônica.
"Não gosto de dividir a música em categorias. O hip hop é um amálgama de todos os gêneros e influenciou todos os gêneros. Se Afrika Bambaataa não tivesse sido exposto a Kraftwerk não teria havido um "Planet Rock'", afirma Beans, referindo-se a um dos principais hits do hip hop compostos na década de 80.
"Sua tecnologia está muitos anos-luz à frente da nossa / De que planetas vocês vêm?", diz o sampler do disco de estréia do grupo de rap carioca Inumanos, um bom exemplo de que os novos ares já atingem também o Brasil.
Ainda que discursos politizados permeiem, sim, a maior parte das letras do álbum, que deve ser lançado no próximo mês pela Bizarre, as palavras-chave são "seqüestre a tecnologia", "terrorista nerd" ou "Super Nintendo".
Mais que uma referência verbal, os videogames, ao lado de laptops, teclados e toca CDs, passaram a dividir o espaço dos pick-ups e discos de vinil. Outra vez, é o rap usando os meios que têm à mão para passar a mensagem.
"Quando o hip hop começou, os produtores usavam uma bateria eletrônica barata [modelo TR808] que não tinha dado certo. E aquilo acabou virando, por muito tempo, "o som" do hip hop", conta o produtor musical Dudu Marote. "Hoje, as pessoas têm PCs e acabam usando programas como Reason, Fruitloops, que são os mesmos usados para fazer música eletrônica", explica.
Proprietário do selo Segundo Mundo, que lançou recentemente o disco do DJ Mau Mau, Marote também decidiu incluir em seu catálogo um rapper da nova geração, o desbocado De Leve. "Tem gente [do hip hop] que mete o pau até hoje, dizendo que o De Leve é um falso rapper. Mas acredito que a música tenha que ser maior do que qualquer dogma", defende.
Carlos Farinha, fundador do selo/loja Bizarre, referência do "circuito indie" paulistano, concorda. "O que o Inumanos, tanto quanto o Prefuse, o El-P e todo o povo da [gravadora] Def Jux têm em comum é que não falam só para o público tradicional do hip hop. Há elementos musicais um pouco estranhos a esse universo", diz.
Iniciado nas pick-ups por papas do tecno como Juan Atkinson e Derrick May, o mais recente menino prodígio de Detroit, DJ Jimmy Edgar, também aposta na hibridização entre os gêneros: "Você vê os clipes na MTV, são todos iguais. Carrões, muito dinheiro, garotas chacoalhando a bunda! Há poucos artistas realmente originais por aí, e os que são estão se voltando para a tecnologia e a música eletrônica em busca de novas idéias".
Assim, uma das conseqüências talvez mais interessantes provocadas pela "nova cena" seja a de reequilibrar outra vez os pilares do hip hop. "Está havendo um resgate do turntablist, da arte do DJ. Com esse hip hop milionário, ninguém sabe quem é o DJ do Snoop Doggy", exemplifica o DJ e jornalista Camilo Rocha, outro que, entre uma faixa e outra, não deixa de incluir algumas batidas do gênero em seu setlist.


Texto Anterior: Programação
Próximo Texto: Comentário: Tudo nasce da paixão pela música em si
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.