São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

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Crítica/"Noite e Neblina"

Resnais leva à perplexidade em filme sobre o Holocausto

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

As gerações mais recentes conhecem o Holocausto-espetáculo de Spielberg ("A Lista de Schindler"), o Holocausto burlesco de Roberto Benigni ("A Vida É Bela") e até mesmo o Holocausto populista de "Olga". Todos eles nos desviam de um mesmo assunto -o Holocausto- e, pior, praticamente o reduzem a uma ficção.
Por sorte, existem os 30 minutos de "Noite e Neblina" (1955), que, com as nove horas de "Shoah" (inédito entre nós), recolocam as coisas em ordem. Aqui, Alain Resnais nos restitui nada menos que o Holocausto, com uma das montagens mais precisas do cinema moderno.
Daí nascer um filme desconcertante. À descrição minuciosa dos campos, com sua arquitetura, diversos departamentos, divisões sociais, clínicas e prisões -feitas a partir das ruínas preservadas dos campos de extermínio, dessas ruínas da morte-, intercalam-se as imagens que Godard um dia, e para sempre, definiu como pornográficas: as imagens dos prisioneiros, em filmes ou fotos, em seu caminho para a morte. Os cabelos ou óculos perdidos na rota para o cadafalso.
A intercalação entre o presente (o de hoje ou qualquer outro) e a memória deixa o espectador em estado de perplexidade e impotência. Elas são signos do acontecido, do irreparável. Diante dessas imagens só podemos chorar e lembrar. Ou, antes, podemos chorar e não podemos deixar de lembrar. Elas servem para isso. Para a memória. Para que o intolerável não se repita. Para que alguns de nós, ao menos, nunca mais aceitem a ordem unida.
São cenas documentárias, filmadas quase todas pelos próprios nazistas. Algumas pelas tropas aliadas, ao chegarem. Muitas delas nós já conhecemos. Continuam inacreditáveis, tão mais inacreditáveis quanto carregam a evidência do irrepresentável.
O que será isso? Um documentário? Um filme de terror? (Que pensar da imagem da cabeça de mulher que vemos e que, ao se distanciar, revela o corpo diminuto, diminuído pela fome e pelo sofrimento? Que pensar dos corpos dos homens sem cabeça, de um lado, e do cesto de cabeças, de outro?) Um filme poético? Sim, pois em vários momentos o texto de Jean Cayrol, em sua beleza, nos consola, nos lembrando da capacidade humana de superar a própria monstruosidade.
E, sobretudo, este filme atualiza com rigor e poesia a brutalidade do maior de todos os desastres da guerra. "Noite e Neblina" é um filme que governos responsáveis, em qualquer nível, deveriam tornar de visão obrigatória para estudantes. Poderia, em sua preciosa meia hora de duração, ensinar algumas coisas sobre a vida, o sadismo, a irresponsabilidade.
Ensinaria, com certeza, a diferença que existe entre a arte, marginal, do cinema e a arte oficial da distração em que se está transformando o cinema.
Duas questões conexas: 1) Vale a pena comprar um filme de 30 minutos pelo preço de um longa? Vale, acho eu; 2) Os extras correspondem à grandeza do filme? Não, já que dava para buscar, no exterior, material complementar.


NOITE E NEBLINA     
Direção:
Alain Resnais
Distribuição: Aurora; R$ 30, em média


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