São Paulo, Sexta-feira, 13 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY
Fim do mundo mais uma vez adiado

Não tenho certeza, mas acho que, como todo mundo, já corri alguns riscos ao longo da vida. Nada de trágico até aqui, o que não chega a ser vantagem. Pouco me arrisquei, nunca ateei fogo às vestes, não me atirei do alto do Corcovado e tenho como saudável norma de vida evitar a culinária baiana. Mesmo assim, fiquei preocupado quando, na segunda-feira, cheguei em casa à hora em que a cozinheira, o motorista e a faxineira almoçavam na copa.
Surpreendi a conversa desses amigos que são parte do meu cotidiano e me ajudam a viver e não a morrer. Falavam sobre o fim do mundo. Bem mais informados do que eu, que não ouço rádio e só leio nos jornais o que não me interessa (política, arte, economia e outras inutilidades).
Eles estavam preocupados com o noticiário de algumas emissoras, dessas que varam a noite dando conta de tudo o que acontece ou deixa de acontecer. O motorista chegou a perguntar se devia mesmo encher o tanque para o resto da semana, segundo ele, a gasolina devia dar até o dia fatal que aguardava o mundo.
Pois fiquei sabendo que este mesmo mundo estava mais uma vez para acabar, acho que na quarta-feira ou mesmo na sexta, que é data lúgubre, sexta-feira 13 -e de agosto ainda por cima. Não sei se a previsão nasceu dos búzios de um pai-de-santo ou de sofisticada equação de algum cientista. Como sempre, há um versinho de Nostradamus que serve para qualquer catástrofe ou até mesmo para nenhuma catástrofe.
O fato é que o planeta Terra iria se desintegrar, ou pelo impacto de um gigantesco asteróide ou pela explosão de suas entranhas que vomitariam fogo em cima de todos nós. Como sempre, também, a Lua estaria envolvida nisso, a mesma Lua que Puccini chamou de "amante descorada dos mortos".
Não chega a ser novidade essa história de fim do mundo. Em criança, ouvi e dei crédito à mesmíssima profecia. Minha mãe chegou a fazer um estoque de velas bentas na matriz de Nossa Senhora da Guia, velas abençoadas por frei Tiago Mattioli -um frade da Ordem dos Servos de Maria, nascido em Cremona, terra de Stradivarius-, que faturou horrores à custa da desgraça universal anunciada num jornal radiofônico que tinha como patrocinador o colírio Moura Brasil (duas gotas, dois minutos, dois olhos claros e bonitos).
Diziam que somente as velas bentas dariam luz para iluminar os três dias que antecederiam o cataclismo final. Aproveitaríamos esses dias para fazer, como os artistas de teatro, um laboratório do fim do mundo, dedicando-os às despedidas, pedindo desculpas ao próximo e perdão ao Todo-Poderoso.
O mundo não acabou naquela ocasião, ele não continuou melhor do que era antes. Pelo contrário, agravou seus pecados. E também não acabou desta vez -o que é pena.
Já que a morte individual é certa, morrer de fim de mundo tem duas atrações suplementares. Primeira: o espetáculo em si, que seria literalmente o "maior espetáculo da Terra" sem produção de DeMille e sem direção de Spielberg, excelente garantia de bom gosto. Nem mesmo os fazedores de efeitos especiais do cinema e da TV seriam capazes de produzir o show final.
Segunda e a mais importante atração: o mundo acabando, nada teríamos a fazer, de maneira que não haveria mais história, nem manhãs, nem tardes, nem flores brotando, nem mulheres, nem prazeres.
O chato da morte individual é que a gente vai embora mas os outros continuam. Exemplo: Napoleão, que foi o homem mais poderoso de seu tempo, nunca acendeu uma lâmpada elétrica, nunca usou um aspirador de pó, nunca ouviu a dupla Leandro e Leonardo nem se comoveu com o primeiro aniversário da filha de Xuxa. O fim do mundo globalizado e instantâneo nos tornaria absolutos, como aquele rei da França que dizia: "Depois de mim, o dilúvio!"
É famosa a passagem da vida de São Luiz Gonzaga, muito lembrada nos conventos e prostíbulos. O filho de Branca de Castela estava no recreio, jogando um troço qualquer, quando lhe perguntaram o que faria se o mundo fosse acabar naquele momento. O santo respondeu: "Continuaria fazendo o que estou fazendo agora".
Falei acima que o exemplo do protetor da castidade de todos nós é sempre lembrado nos conventos e bordéis por óbvios motivos. Nos conventos, para que todos continuem a guardar a castidade. Nos puteiros, para que todos continuem pecando contra. O fim do mundo não deve prejudicar essas coisas.
Tomei informações para saber se o mundo desta vez acabaria mesmo. Telefonei para o Jânio de Freitas, para o Ruy Castro e para meu irmão mais velho, cujo mundo acaba toda vez que o Flamengo perde. No dia seguinte, li os jornais. Ou deu bobeira geral na turma e foram todos furados -o que não chega a ser raridade- ou tudo continua na mesma. Com uma novidade apenas: na impossibilidade de acabarem com o mundo, ACM e FHC querem acabar com a pobreza.


Texto Anterior: Noite Ilustrada - Erika Palomino: Depois daqui do fim do mundo você vai para onde?
Próximo Texto: Cinema: Manifesto lança Dogma à brasileira
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.