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RODAPÉ
O surrealismo gótico de Mandiargues
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
De todos os movimentos da
vanguarda européia, o surrealismo foi aquele cujas fragilidades se mostraram mais evidentes com o passar dos anos. Dadaísmo e expressionismo (para
citar dois exemplos) foram experiências breves e seminais, ao passo que o surrealismo se estendeu
ao longo de décadas, sendo contrastado por correntes estéticas
mais contemporâneas.
Assim, a publicação de um filho
tardio do surrealismo como André Pieyre de Mandiargues (1909-1991) é ao mesmo tempo uma
descoberta e uma demonstração
de como o surrealismo pode soar
ultrapassado.
Em primeiro lugar, é preciso registrar a importância do trabalho
da tradutora Mônica Cristina
Corrêa, que "apresenta" Mandiargues ao Brasil. Embora figure
em qualquer compêndio de literatura francesa, o autor de "Fogo
de Brasa" é praticamente desconhecido entre nós -e essa edição
certamente despertará interesse
por suas outras obras.
Mas tal interesse pode esbarrar
em resistências do leitor contemporâneo, pois há algo de excessivo
e artificial na atmosfera onírica de
suas narrativas. Quase coetâneo
dos demais surrealistas (Breton,
Aragon), Mandiargues só começou a publicar nos anos 40. Sua literatura, portanto, retoma alguns
motivos consagrados pelo movimento: confusão entre sonho e
realidade, erotismo violento,
ocultismo de matriz primitivista,
deformação das relações de causalidade, submissão do mundo
exterior às leis de uma paisagem
interior.
Os surrealistas de primeira hora
pretendiam extrair desse solipsismo um projeto político: reivindicar a verdade profunda do sujeito
e de sua psique equivalia a resistir
às alienantes determinações externas (o que não impediu que alguns artistas do movimento se
engajassem no stalinismo do pós-guerra).
Nos contos de "Fogo de Brasa",
essa dimensão só aparece (e de
modo enviesado) em "Mórbida
Miragem", em que uma relação
de pedofilia vivida como "embriaguez ou demência compartilhada" culmina com o narrador
embarcando em um "bote fúnebre" que descobre pertencer a
uma seita de figuras envergando
"camisas pretas" (uma alusão ao
fascistas).
O conto é exemplar do estetismo de Mandiargues. Não há aqui
nem denúncia nem adesão ideológica; nem conflito moral nem
imoralismo -apenas a criação de
uma ambiência crepuscular, gótica, com céus cortados por corvos
e por raios que iluminam a torturante vigília das personagens.
A escrita barroca de Mandiargues é pródiga em descrições que
projetam brutalmente nos objetos as cores e as formas do desejo,
cancelando assim os limites entre
realidade e delírio. No conto que
dá título ao livro, por exemplo, o
transe musical de uma festa de
brasileiros em Paris culmina em
uma cena de rapto e violência. E
em "O Nu entre os Caixões" o devaneio transporta o narrador até
uma sala repleta de ataúdes, uma
espécie de dimensão paralela do
espaço e do tempo.
Cada gesto das personagens de
Mandiargues adquire uma intensidade quase religiosa, e o vigor de
suas narrativas reside na criação
de um universo regido por forças
elementares -como podemos
ler no belo "Rodogune", em que
uma camponesa é perseguida por
uma comunidade de rudes catalães e sardos, que punem seu erotismo atávico de maneira ritualística.
Tudo isso corresponde a um
programa poético e ético que enxergava no primitivo uma forma
de vida mais "autêntica". Contos
como "As Pedregosas" e "O Diamante", porém, mostram como
esse imaginário pode facilmente
ser degradado em magia, em meras fantasias na qual pequenas
mulheres surgem de dentro de
uma rocha ou em que a filha de
um lapidador judeu perde a virgindade no interior de uma pedra
preciosa.
Há beleza retórica, imagética,
nos contos de "Fogo de Brasa".
Mas o livro de Mandiargues também mostra que o surrealismo,
quando distante de seu enraizamento histórico (que aliava ímpeto político e humor corrosivo), se
transforma em conto de fadas.
Fogo de Brasa
Autor: André Pieyre de Mandiargues
Tradução: Mônica Cristina Corrêa
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 28 (128 págs.)
Lançamento: segunda (15/9), às 19h30,
na Aliança Francesa (r. General Jardim,
182, São Paulo, tel. 0/xx/11/3017-5682)
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