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São Paulo, sábado, 13 de setembro de 2003

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RODAPÉ

O surrealismo gótico de Mandiargues

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

De todos os movimentos da vanguarda européia, o surrealismo foi aquele cujas fragilidades se mostraram mais evidentes com o passar dos anos. Dadaísmo e expressionismo (para citar dois exemplos) foram experiências breves e seminais, ao passo que o surrealismo se estendeu ao longo de décadas, sendo contrastado por correntes estéticas mais contemporâneas.
Assim, a publicação de um filho tardio do surrealismo como André Pieyre de Mandiargues (1909-1991) é ao mesmo tempo uma descoberta e uma demonstração de como o surrealismo pode soar ultrapassado.
Em primeiro lugar, é preciso registrar a importância do trabalho da tradutora Mônica Cristina Corrêa, que "apresenta" Mandiargues ao Brasil. Embora figure em qualquer compêndio de literatura francesa, o autor de "Fogo de Brasa" é praticamente desconhecido entre nós -e essa edição certamente despertará interesse por suas outras obras.
Mas tal interesse pode esbarrar em resistências do leitor contemporâneo, pois há algo de excessivo e artificial na atmosfera onírica de suas narrativas. Quase coetâneo dos demais surrealistas (Breton, Aragon), Mandiargues só começou a publicar nos anos 40. Sua literatura, portanto, retoma alguns motivos consagrados pelo movimento: confusão entre sonho e realidade, erotismo violento, ocultismo de matriz primitivista, deformação das relações de causalidade, submissão do mundo exterior às leis de uma paisagem interior.
Os surrealistas de primeira hora pretendiam extrair desse solipsismo um projeto político: reivindicar a verdade profunda do sujeito e de sua psique equivalia a resistir às alienantes determinações externas (o que não impediu que alguns artistas do movimento se engajassem no stalinismo do pós-guerra).
Nos contos de "Fogo de Brasa", essa dimensão só aparece (e de modo enviesado) em "Mórbida Miragem", em que uma relação de pedofilia vivida como "embriaguez ou demência compartilhada" culmina com o narrador embarcando em um "bote fúnebre" que descobre pertencer a uma seita de figuras envergando "camisas pretas" (uma alusão ao fascistas).
O conto é exemplar do estetismo de Mandiargues. Não há aqui nem denúncia nem adesão ideológica; nem conflito moral nem imoralismo -apenas a criação de uma ambiência crepuscular, gótica, com céus cortados por corvos e por raios que iluminam a torturante vigília das personagens.
A escrita barroca de Mandiargues é pródiga em descrições que projetam brutalmente nos objetos as cores e as formas do desejo, cancelando assim os limites entre realidade e delírio. No conto que dá título ao livro, por exemplo, o transe musical de uma festa de brasileiros em Paris culmina em uma cena de rapto e violência. E em "O Nu entre os Caixões" o devaneio transporta o narrador até uma sala repleta de ataúdes, uma espécie de dimensão paralela do espaço e do tempo.
Cada gesto das personagens de Mandiargues adquire uma intensidade quase religiosa, e o vigor de suas narrativas reside na criação de um universo regido por forças elementares -como podemos ler no belo "Rodogune", em que uma camponesa é perseguida por uma comunidade de rudes catalães e sardos, que punem seu erotismo atávico de maneira ritualística.
Tudo isso corresponde a um programa poético e ético que enxergava no primitivo uma forma de vida mais "autêntica". Contos como "As Pedregosas" e "O Diamante", porém, mostram como esse imaginário pode facilmente ser degradado em magia, em meras fantasias na qual pequenas mulheres surgem de dentro de uma rocha ou em que a filha de um lapidador judeu perde a virgindade no interior de uma pedra preciosa.
Há beleza retórica, imagética, nos contos de "Fogo de Brasa". Mas o livro de Mandiargues também mostra que o surrealismo, quando distante de seu enraizamento histórico (que aliava ímpeto político e humor corrosivo), se transforma em conto de fadas.


Fogo de Brasa   
Autor: André Pieyre de Mandiargues
Tradução: Mônica Cristina Corrêa
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 28 (128 págs.)
Lançamento: segunda (15/9), às 19h30, na Aliança Francesa (r. General Jardim, 182, São Paulo, tel. 0/xx/11/3017-5682)



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