São Paulo, segunda-feira, 13 de setembro de 2004

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NELSON ASCHER

A notícia do século 21

Durante a recente convenção do Partido Democrata, que o nomeou seu candidato à eleição presidencial americana de novembro, o senador John Kerry declarou, em tons ensaiadamente marciais, que estava se apresentando para o serviço militar. Ele havia de fato, 36 anos atrás, combatido alguns meses no Vietnã, de onde, com ferimentos superficiais e condecorado, regressou para assumir um lugar de destaque nos protestos contra a guerra. No ponto alto destes e assumindo sua parcela de culpa, ele acusou em público as tropas do país de cometerem na Indochina crimes dignos de Gêngis Khan.
Foi o movimento antiguerra que impulsionou sua carreira política, aliás pouco notável, e ele a passou se opondo sistematicamente à aprovação de verbas para novos armamentos e à projeção do poderio bélico nacional no exterior. Kerry jamais repudiou o movimento de que participara e o converteu amiúde no fundamento de sua autoridade moral. Por que é que ele resolveu agora ressuscitar seu breve passado de "criminoso de guerra" confesso?
Simplesmente porque a maioria de seus concidadãos acredita estar em guerra, não apenas no Iraque, mas no mundo inteiro, contra o islamismo radical. Embora muitos democratas discordem, os eleitores indecisos preferem um candidato preparado a defendê-los. Daí a tentativa de enfiar, graças a um mínimo de ação que, além de ter ocorrido há muito, fora repudiada pelo próprio, um político essencialmente pacifista no uniforme de um agressivo "falcão".
As reações não demoraram e duas centenas de veteranos puseram no ar, aqui e ali, anúncios que lançavam dúvidas sobre o Kerry guerreiro. Como as medalhas daquele conflito haviam sido distribuídas generosamente, não lhes foi difícil mostrar que as do senador envolviam bem menos heroísmo do que seria de supor e, ademais, eles denunciaram contradições ou equívocos em suas afirmações sobre, por exemplo, uma improvável incursão cambojana no Natal de 1968. Nada disso foi refutado e, por duas ou três semanas, a grande imprensa e as principais redes de TV americanas ignoraram a história.
No entanto, a internet e as estações de rádio dedicadas a discutir política não permitiram seu silenciamento. Quando o resto da mídia acordou, boa parte da nação já sabia das acusações e os democratas começavam a perder pontos nas pesquisas eleitorais. As emendas posteriores se revelaram piores do que o soneto, pois o que se tentou fazer foi redirecionar a discussão contra os republicanos através da insinuação, tampouco demonstrada, de que era o atual presidente que estava por trás dos veteranos.
A estratégia que consistia em, deixando de lado a guerra atual, abordar outra, concluída há décadas, falhou e a convenção democrata não rendeu pontos suplementares a seu candidato. Quanto à convenção republicana, o que se verificou foi o contrário: o presidente que busca a reeleição emergiu dela com uma vantagem substancial.
O contra-ataque veio na última quarta-feira quando Dan Rather, o âncora do popular programa "60 Minutes", da CBS, revelou memorandos "recém-descobertos" que questionavam o passado militar de Bush. O presidente, que não lutara na Indochina, alistara-se em vez disso na Força Aérea da Guarda Nacional. Os memorandos, assinados por um oficial superior que morreu faz 20 anos, falavam de sua falta de profissionalismo, irresponsabilidade e de pressões exercidas para melhorar sua avaliação.
Clinton, um democrata que escapara do serviço militar, reelegera-se derrotando Bob Dole, um herói mutilado da Segunda Guerra Mundial. Desde então havia um acordo tácito entre os partidos segundo o qual o que acontecera nos dias do Vietnã seria considerado irrelevante para os atuais. Os tempos, porém, mudaram e quem divulgou os memorandos pretendia atingir os republicanos. A CBS inclusive colocou no seu site, em formato PDF, os papéis que recebera.
Estes desencadearam uma tempestade na blogosfera e, cerca de 12 horas depois, apareceram as inconsistências. Não obstante os memorandos terem sido supostamente redigidos entre 72 e 73 numa máquina de escrever, sua aparência é exatamente a de um documento do Microsoft Word.
Logo, peritos profissionais e amadores em datilografia, tipografia e software entraram na refrega opinando que nenhuma máquina de escrever disponível na época era capaz de produzir o mesmo espaçamento entre os caracteres, um idêntico alinhamento vertical, tal ou qual centralização dos títulos etc. Outros interessados, conferindo documentos militares contemporâneos, encontraram mais incoerências. A internet divulgou também o testemunho da viúva e do filho do oficial em questão, ambos desconfiando da autenticidade dos memorandos. Em resumo, tudo no momento aponta para uma falsificação. E malfeita.
Caso esta se comprove, os danos, tanto para a candidatura Kerry quanto para organizações noticiosas como a CBS, são incalculáveis. Seus competidores na mídia liberal, que em geral se atiram como abutres sobre "revelações" assim, optaram pela cautela. O mais importante, contudo, é a rapidez com que o processo se desenrolou. Dispersas pelos EUA, milhares de pessoas que nem sequer se conhecem formaram, em horas, com suas suspeitas e conhecimentos, seu ceticismo e perícia, uma rede capaz de realizar, em tempo recorde e de graça, uma investigação minuciosa que, em circunstâncias diferentes, duraria meses e custaria milhões. Trata-se de um fenômeno absolutamente novo e, seja qual for seu resultado neste caso específico, a relação entre produtores e consumidores de notícias nunca mais voltará a ser como antes.



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