|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
A notícia do século 21
Durante a recente convenção do Partido Democrata,
que o nomeou seu candidato à
eleição presidencial americana de
novembro, o senador John Kerry
declarou, em tons ensaiadamente
marciais, que estava se apresentando para o serviço militar. Ele
havia de fato, 36 anos atrás, combatido alguns meses no Vietnã, de
onde, com ferimentos superficiais
e condecorado, regressou para assumir um lugar de destaque nos
protestos contra a guerra. No
ponto alto destes e assumindo sua
parcela de culpa, ele acusou em
público as tropas do país de cometerem na Indochina crimes dignos de Gêngis Khan.
Foi o movimento antiguerra
que impulsionou sua carreira política, aliás pouco notável, e ele a
passou se opondo sistematicamente à aprovação de verbas para novos armamentos e à projeção do poderio bélico nacional no
exterior. Kerry jamais repudiou o
movimento de que participara e o
converteu amiúde no fundamento de sua autoridade moral. Por
que é que ele resolveu agora ressuscitar seu breve passado de "criminoso de guerra" confesso?
Simplesmente porque a maioria
de seus concidadãos acredita estar em guerra, não apenas no Iraque, mas no mundo inteiro, contra o islamismo radical. Embora
muitos democratas discordem, os
eleitores indecisos preferem um
candidato preparado a defendê-los. Daí a tentativa de enfiar, graças a um mínimo de ação que,
além de ter ocorrido há muito, fora repudiada pelo próprio, um
político essencialmente pacifista
no uniforme de um agressivo "falcão".
As reações não demoraram e
duas centenas de veteranos puseram no ar, aqui e ali, anúncios
que lançavam dúvidas sobre o
Kerry guerreiro. Como as medalhas daquele conflito haviam sido
distribuídas generosamente, não
lhes foi difícil mostrar que as do
senador envolviam bem menos
heroísmo do que seria de supor e,
ademais, eles denunciaram contradições ou equívocos em suas
afirmações sobre, por exemplo,
uma improvável incursão cambojana no Natal de 1968. Nada
disso foi refutado e, por duas ou
três semanas, a grande imprensa
e as principais redes de TV americanas ignoraram a história.
No entanto, a internet e as estações de rádio dedicadas a discutir
política não permitiram seu silenciamento. Quando o resto da mídia acordou, boa parte da nação
já sabia das acusações e os democratas começavam a perder pontos nas pesquisas eleitorais. As
emendas posteriores se revelaram
piores do que o soneto, pois o que
se tentou fazer foi redirecionar a
discussão contra os republicanos
através da insinuação, tampouco
demonstrada, de que era o atual
presidente que estava por trás dos
veteranos.
A estratégia que consistia em,
deixando de lado a guerra atual,
abordar outra, concluída há décadas, falhou e a convenção democrata não rendeu pontos suplementares a seu candidato.
Quanto à convenção republicana,
o que se verificou foi o contrário: o
presidente que busca a reeleição
emergiu dela com uma vantagem
substancial.
O contra-ataque veio na última
quarta-feira quando Dan Rather,
o âncora do popular programa
"60 Minutes", da CBS, revelou
memorandos "recém-descobertos" que questionavam o passado
militar de Bush. O presidente, que
não lutara na Indochina, alistara-se em vez disso na Força Aérea
da Guarda Nacional. Os memorandos, assinados por um oficial
superior que morreu faz 20 anos,
falavam de sua falta de profissionalismo, irresponsabilidade e de
pressões exercidas para melhorar
sua avaliação.
Clinton, um democrata que escapara do serviço militar, reelegera-se derrotando Bob Dole, um
herói mutilado da Segunda Guerra Mundial. Desde então havia
um acordo tácito entre os partidos segundo o qual o que acontecera nos dias do Vietnã seria considerado irrelevante para os
atuais. Os tempos, porém, mudaram e quem divulgou os memorandos pretendia atingir os republicanos. A CBS inclusive colocou
no seu site, em formato PDF, os
papéis que recebera.
Estes desencadearam uma tempestade na blogosfera e, cerca de
12 horas depois, apareceram as
inconsistências. Não obstante os
memorandos terem sido supostamente redigidos entre 72 e 73 numa máquina de escrever, sua
aparência é exatamente a de um
documento do Microsoft Word.
Logo, peritos profissionais e
amadores em datilografia, tipografia e software entraram na refrega opinando que nenhuma
máquina de escrever disponível
na época era capaz de produzir o
mesmo espaçamento entre os caracteres, um idêntico alinhamento vertical, tal ou qual centralização dos títulos etc. Outros interessados, conferindo documentos
militares contemporâneos, encontraram mais incoerências. A
internet divulgou também o testemunho da viúva e do filho do oficial em questão, ambos desconfiando da autenticidade dos memorandos. Em resumo, tudo no
momento aponta para uma falsificação. E malfeita.
Caso esta se comprove, os danos, tanto para a candidatura
Kerry quanto para organizações
noticiosas como a CBS, são incalculáveis. Seus competidores na
mídia liberal, que em geral se atiram como abutres sobre "revelações" assim, optaram pela cautela. O mais importante, contudo, é
a rapidez com que o processo se
desenrolou. Dispersas pelos EUA,
milhares de pessoas que nem sequer se conhecem formaram, em
horas, com suas suspeitas e conhecimentos, seu ceticismo e perícia, uma rede capaz de realizar,
em tempo recorde e de graça,
uma investigação minuciosa que,
em circunstâncias diferentes, duraria meses e custaria milhões.
Trata-se de um fenômeno absolutamente novo e, seja qual for seu
resultado neste caso específico, a
relação entre produtores e consumidores de notícias nunca mais
voltará a ser como antes.
Texto Anterior: Literatura: Alan Parker se rende ao mundo das letras Próximo Texto: Panorâmica - Poesia: Revista "Inimigo Rumor" chega ao número 16 Índice
|