São Paulo, segunda-feira, 13 de setembro de 2004

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LITERATURA

Em "O Beijo do Otário", diretor de "The Commitments" larga câmera para contar história de batedor de carteiras

Alan Parker se rende ao mundo das letras

LÚCIA VALENTIM RODRIGUES
DA REDAÇÃO

Ele tinha apenas sete anos quando entrou no mundo do crime. Não procurou. A encrenca se jogou na sua frente durante o terremoto de 1906 em San Francisco, nos Estados Unidos. Ele havia se perdido da mãe e das duas irmãs, quando um homem -médico, talvez- passou seu paletó a ele e entrou correndo num prédio em destroços para salvar alguém.
Miserável e agora sem casa, já que a sua desmoronara, achou no casaco uma carteira cheia de dinheiro. "Pela minha breve experiência de vida, notei que o problema era que tudo geralmente pertencia a outra pessoa. (...) Foi como se tivesse recebido um sinal do céu. O sinal dizia "otário", e não senti nem a mais leve pontada de culpa nem a menor sensação de estar agindo mal", revela o punguista Thomas Patrick Moran.
Embora pudesse ter sido uma história real, não passa de uma "autobiografia" inventada pelo cineasta inglês Alan Parker, 60, em sua primeira incursão ao romance, "O Beijo do Otário", lançada no Brasil pela Planeta.
Inspirado por 30 páginas de prosa, logo após ter terminado seu filme "Evita", em 1996, Parker não quis filmar essa idéia. "Por algum motivo inexplicável, achei que tinha escrito o início de um romance. Até cheguei a fazer um roteiro, mas hoje em dia um filme desses sai muito caro, então creio que deva permanecer sendo apenas um livro. Mas com certeza daria um grande filme."
Após o pontapé inicial, sua primeira imersão na literatura, contudo, teve de esperar. Parker foi convidado a fazer outra produção, "As Cinzas de Angela". "Mas não sem antes dar o título a meu manuscrito: "O Beijo do Otário"."
A expressão, explicada logo no início do livro, significa o golpe mais difícil na profissão de batedor de carteiras: "É tomar alguma coisa de alguém, cara a cara, olhando direto no olho da pessoa", escreve. "Achei que era a melhor metáfora para minha história de amor", reexplica Parker.
A dedicação ao livro só veio durante a produção de outro longa, "A Vida de David Gale", quando os sindicatos de Hollywood programaram greves de atores e de roteiristas. "Meu estúdio não quis arriscar nos pagar para ficarmos de braços cruzados, então adiaram o projeto. Frustrado por não poder dirigir, tirei o manuscrito da gaveta e escrevi quase toda a história. Terminei o livro junto com o filme seguinte."
"O Beijo do Otário" faz um panorama crítico dos EUA em formação, passando pelo período da Depressão e pela Lei Seca. "Adorei essa América vista pelos olhos de um ladrão mesquinho. Tentei retratar a sociedade com sua filosofia de "ladrão que rouba ladrão" e seu senso de ganância pelo dinheiro. Todos roubam, só que isso é chamado de negócio."
Pulando para a época atual, com suas guerras e maracutaias diplomáticas, ele critica a questão do conflito no Iraque: "Não foram somente os EUA que se lançaram à guerra, meu país também. George W. Bush é indiscutivelmente estúpido, mas Tony Blair não. Ele é inteligente e tem compaixão, mas nesse caso específico parece ter havido uma espécie de mal funcionamento de seu cérebro. Essa guerra é um tremendo erro".
E o que é mais divertido: dirigir ou escrever? "Eu me considero um diretor de cinema em primeiro lugar, mas adorei escrever o livro -foi um ótimo exercício de liberação criativa. Num filme, há cem pessoas comigo, é um processo colaborativo. No livro, havia eu e o computador. Escrever é mais prazeroso. Uma filmagem é uma casa de loucos, cheia de angústia e nervosismo. Mas não vejo a hora de voltar a um set!", brinca.
Ele diz que o roteiro é seu leme ao filmar. "Já com o romance, cada imagem, medo, dúvida, olhar e toque é dado pelos mais difíceis efeitos especiais: as palavras."
Mesmo tendo achado uma experiência bem satisfatória -"é bem melhor que lidar com atores egoístas e executivos estúpidos"-, o mais provável é que sir Alan Parker retorne para o cinema logo. "Mas ainda estou em dúvida sobre o próximo projeto. Fico angustiado cada vez que começo algo novo, tenho de ter muita certeza no que vou embarcar."


O BEIJO DO OTÁRIO. Autor: Alan Parker. Tradutor: Manoel Paulo Ferreira. Editora: Planeta. Quanto: R$ 42 (314 págs.).


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