São Paulo, sábado, 13 de setembro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Na arrebentação


Da violência da vida à contundência da forma, o salto é tão necessário quanto pouco previsível

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

A TENTATIVA de especificar sob o rótulo da estetização da violência uma larga fatia da produção ficcional brasileira contemporânea é um tiro n'água. Não é de hoje que o "angu de sangue" -para falar como Marcelino Freire, contista pernambucano, radicado em São Paulo- é prato do dia e especialidade nacional. Da violência da vida à contundência da forma, contudo, o salto é tão necessário quanto pouco previsível. Que urubu come carniça, todos sabemos, como ele alça vôo, eis a questão. Dar consistência simbólica a uma experiência brutal nem sempre é sinônimo de fazer arte brutalista e a receita nunca está inscrita na matéria.
"Rasif - Mar que Arrebenta", de Freire, certamente decepcionará os que atravessarem a coletânea de 17 contos (o mesmo número de "Angu de Sangue") em busca de beleza clássica, mas não de lirismo, um lirismo sujo e explosivo, atravessando título -pedra contra água, alusão ambígua e nostálgica à origem-, epígrafes, tomadas a Lia de Itamaracá e Manuel Bandeira, "Para Iemanjá" e "O futuro que me espera", litanias elegíacas que emolduram o livro.
Está também no amor, tema recorrente no volume, que recebe de Freire tratamento nada edulcorado, com acentos de sordidez patética, muito pouco Romeu, muito pouco Julieta. Insidioso e incômodo, o amor é, na sua face amena, "esparadrapo que não desgruda" da funcionária invisível de lavanderia enfeitiçada pela trouxa imunda do cliente ("Roupa Suja"), do ator maduro ciumento do aprendiz jovem ("Os Atores"), do menino de colo que toma o travesti pela mãe ("Júnior"). Em sua versão extrema, pode acomodar personagens e circunstâncias sombrias, incluindo um seqüestrador ("Amor Cristão"), um terrorista ("O Meu Homem-Bomba") ou um pedófilo ("I-no-cen-te"). Apesar da contundência do universo que expressa, exigindo a tomada de posição, Freire ganha corpo de escritor na capacidade, ora irônica, ora simpática, de conferir consistência às vozes em primeira pessoa. A exemplo de Dalton Trevisan, está inscrito numa tradição de exímios recriadores da oralidade, que dominam a coordenação enumerativa, a elipse alternada com a redundância, ocasional e funcional, típicas da do discurso direto informal.
Em "Tupi-Guarani", esta importância da fala em seus textos aparece em registro cômico, sob aspecto do discurso frenético do intérprete de um grupo de índios insurrectos, garantindo distância crítica ao que poderia ser mero exercício de engajamento e correção política.
Quando põe em segundo plano a invenção de linguagem e se aproxima, aí sim, do denuncismo, contra alvos como as campanhas assistencialistas que lavam a consciência da classe média ("Da Paz") ou o logro natalino ("Maracabul" e "Meu Último Natal"), Freire é menos feliz.

RASIF - MAR QUE ARREBENTA
Autor: Marcelino Freire
Editora: Record
Quanto: R$ 26 (136 págs.)
Avaliação: bom



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