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LIVROS
Crítica/"A Versão de Barney"
Autor sintetiza ironia judaica
Canadense Mordecai Richler constrói obra que une frase elegante de Philip Roth a "gauchismo" de Woody Allen
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A
combinação de mordacidade, melancolia e
auto-ironia, típicas do
pensamento e da culpa judaicas, é de uma potência explosiva. Alguns dos exemplos mais
conhecidos são Philip Roth e
Woody Allen, mas o canadense
Mordecai Richler, em seu último livro "A Versão de Barney",
não deixa nada a dever.
Ao contrário. Funde a frase
elegantemente sibilina de Roth
com o desajeito de Allen, criando um discurso franco de um
personagem que evidentemente não é um escritor, mas que
tenta escrever uma autobiografia, já em um estado de declínio
marcado pela velhice e pelo mal
de Alzheimer.
"O passado é uma terra estrangeira, lá se fazem coisas diferentes", diz esse personagem
em certa altura do livro, e isso
praticamente sintetiza o núcleo duro do romance. No passado dos anos 50, em Paris, um
grupo de intelectuais e artistas,
entre malucos e promissores,
se reúne por amor e pela comunhão de erros e loucuras.
A farsa do presente
No presente canadense, esses mesmos amigos se dividem
entre artistas muito bem-sucedidos e frustrados, burgueses
hipócritas bem estabelecidos,
drogados e suicidas ou ambientalistas modernosos. Para onde
foi essa idéia de verdade escondida no tempo? Por que ele passou e por que não soubemos ser
o que éramos? Ou será que já
éramos essa farsa?
Esquecendo o nome do escorredor de macarrão, dos sete
anões, de como se passa a marcha em seu carro e cada vez
mais apaixonado por sua terceira mulher, Miriam, que o
troca por um homem mais novo que sabe abrir latas, consertar tratores e fazer fogueiras, o
inadequado Barney tenta se defender da acusação de assassinato de seu melhor amigo, sem
poupar nem a si próprio nem a
ninguém, assim criando uma
afinidade inevitável com o leitor. Encontramos esse velho
decadente e errado no nosso
futuro, nos nossos desencontros, na nossa assepsia artificial
e no nosso desejo diário de jogar tudo para o alto.
Um dos segredos dessa narrativa digressiva e gaga é justamente a doença e a falta de talento do personagem, que justificam explosões, exageros, desacertos, emprestando-lhes
uma naturalidade que lembra
até certa falta de estilo. Mas não
há estilo melhor do que parecer
que não há estilo algum. "Meu
sistema de valores é meio equivocado. É o código de Boogie,
segundo o qual quem quer que
escrevesse um artigo para a
Reader's Digest, cometesse um
best-seller ou fizesse um doutorado extrapolava todos os limites da decência."
Pois é essa a linguagem decente de Barney, a de quem
nunca se deixou poluir por essas águas, embora tenha se enchido de dinheiro e de um típico amor familiar. Seu pai policial, sua mãe louca e apaixonada por estrelas das novelas de
rádio, suas longas "mijadas pinga-pinga" durante a noite, sua
produtora de seriados pasteurizados para a televisão, são traços de um ridículo que cria
muito mais identificação do
que rejeição.
Samuel Johnson, o escritor
que sempre acompanha Barney, diz, em uma de suas frases
memoráveis: "O amor é a sabedoria dos loucos e a loucura dos
sábios". Barney certamente
não é um sábio, mas se aproxima de um louco. Um louco todo
errado e, talvez por isso, profundamente amável e amoroso.
A VERSÃO DE BARNEY
Autor: Mordecai Richler
Tradução: Luciano Vieira Machado
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (576 págs.)
Avaliação: ótimo
TRECHOS
Certa noite, Yossel sentou-se à minha mesa no The Old
Navy, pediu um café filtre,
colocou sete cubinhos de
açúcar na xícara e disse:
"Preciso de alguém que tenha
um passaporte canadense
válido".
"Para quê?"
"Para ganhar dinheiro. Para
que mais?"
Nos dias ruins, minha
memória funciona pior que
um caleidoscópio desfocado.
Há outros, porém, em que
minha lembrança é de uma
nitidez dolorosa. Hoje ela está
funcionando a todo vapor, por
isso é melhor tratar de pôr
logo no papel o que eu vinha
evitando até agora, antes que
eu a neutralize novamente.
Não menti a respeito daqueles
últimos dois dias com Boogie,
mas também não contei toda
a verdade. A verdade é que o
Boogie que me procurou para
tentar largar as drogas não era
mais o amigo que eu tanto
respeitava.
Extraídos do romance "A Versão de
Barney", de Mordecai Richler
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