São Paulo, sábado, 13 de setembro de 2008

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LIVROS

Crítica/"A Versão de Barney"

Autor sintetiza ironia judaica

Canadense Mordecai Richler constrói obra que une frase elegante de Philip Roth a "gauchismo" de Woody Allen

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A combinação de mordacidade, melancolia e auto-ironia, típicas do pensamento e da culpa judaicas, é de uma potência explosiva. Alguns dos exemplos mais conhecidos são Philip Roth e Woody Allen, mas o canadense Mordecai Richler, em seu último livro "A Versão de Barney", não deixa nada a dever. Ao contrário. Funde a frase elegantemente sibilina de Roth com o desajeito de Allen, criando um discurso franco de um personagem que evidentemente não é um escritor, mas que tenta escrever uma autobiografia, já em um estado de declínio marcado pela velhice e pelo mal de Alzheimer. "O passado é uma terra estrangeira, lá se fazem coisas diferentes", diz esse personagem em certa altura do livro, e isso praticamente sintetiza o núcleo duro do romance. No passado dos anos 50, em Paris, um grupo de intelectuais e artistas, entre malucos e promissores, se reúne por amor e pela comunhão de erros e loucuras.

A farsa do presente
No presente canadense, esses mesmos amigos se dividem entre artistas muito bem-sucedidos e frustrados, burgueses hipócritas bem estabelecidos, drogados e suicidas ou ambientalistas modernosos. Para onde foi essa idéia de verdade escondida no tempo? Por que ele passou e por que não soubemos ser o que éramos? Ou será que já éramos essa farsa? Esquecendo o nome do escorredor de macarrão, dos sete anões, de como se passa a marcha em seu carro e cada vez mais apaixonado por sua terceira mulher, Miriam, que o troca por um homem mais novo que sabe abrir latas, consertar tratores e fazer fogueiras, o inadequado Barney tenta se defender da acusação de assassinato de seu melhor amigo, sem poupar nem a si próprio nem a ninguém, assim criando uma afinidade inevitável com o leitor. Encontramos esse velho decadente e errado no nosso futuro, nos nossos desencontros, na nossa assepsia artificial e no nosso desejo diário de jogar tudo para o alto. Um dos segredos dessa narrativa digressiva e gaga é justamente a doença e a falta de talento do personagem, que justificam explosões, exageros, desacertos, emprestando-lhes uma naturalidade que lembra até certa falta de estilo. Mas não há estilo melhor do que parecer que não há estilo algum. "Meu sistema de valores é meio equivocado. É o código de Boogie, segundo o qual quem quer que escrevesse um artigo para a Reader's Digest, cometesse um best-seller ou fizesse um doutorado extrapolava todos os limites da decência." Pois é essa a linguagem decente de Barney, a de quem nunca se deixou poluir por essas águas, embora tenha se enchido de dinheiro e de um típico amor familiar. Seu pai policial, sua mãe louca e apaixonada por estrelas das novelas de rádio, suas longas "mijadas pinga-pinga" durante a noite, sua produtora de seriados pasteurizados para a televisão, são traços de um ridículo que cria muito mais identificação do que rejeição. Samuel Johnson, o escritor que sempre acompanha Barney, diz, em uma de suas frases memoráveis: "O amor é a sabedoria dos loucos e a loucura dos sábios". Barney certamente não é um sábio, mas se aproxima de um louco. Um louco todo errado e, talvez por isso, profundamente amável e amoroso.

A VERSÃO DE BARNEY
Autor: Mordecai Richler
Tradução: Luciano Vieira Machado
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (576 págs.)
Avaliação: ótimo

TRECHOS

Certa noite, Yossel sentou-se à minha mesa no The Old Navy, pediu um café filtre, colocou sete cubinhos de açúcar na xícara e disse: "Preciso de alguém que tenha um passaporte canadense válido". "Para quê?" "Para ganhar dinheiro. Para que mais?"

Nos dias ruins, minha memória funciona pior que um caleidoscópio desfocado. Há outros, porém, em que minha lembrança é de uma nitidez dolorosa. Hoje ela está funcionando a todo vapor, por isso é melhor tratar de pôr logo no papel o que eu vinha evitando até agora, antes que eu a neutralize novamente. Não menti a respeito daqueles últimos dois dias com Boogie, mas também não contei toda a verdade. A verdade é que o Boogie que me procurou para tentar largar as drogas não era mais o amigo que eu tanto respeitava.

Extraídos do romance "A Versão de Barney", de Mordecai Richler



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