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LIVROS
Crítica/"Nevasca"
Romance de trama complexa sincroniza realidade e ficção
Em texto de 1992, Neal Stephenson antecipa o uso disseminado da internet
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
s livros de ficção científica anteciparam desde sempre, de Edgar
Poe a H.G. Wells, as transformações do mundo. Se tais profecias eram feitas com grande
antecedência e o futuro parecia
um lugar distante demais, quase inatingível, não era culpa
desses pioneiros: para eles, até
mesmo o vizinho século 20 parecia não chegar nunca.
A partir dos anos 80, com as
criações cyberpunk de William
Gibson, o futuro afinal chegou,
e as histórias começaram a
acontecer em um terreno de
topografia mais parecida com a
do presente vivido pelo leitor.
"Nevasca", romance de Neal
Stephenson originalmente publicado em 1992, é um dos
grandes responsáveis por essa
sincronização entre a realidade
e a ficção.
A principal influência tanto
de Gibson quanto de Stephenson foi Philip K. Dick, visionário responsável por abdicar da
parafernália típica da ficção
científica para explorar a maquininha mais aterradora dentre todas: o cérebro humano e
os seus defeitos de fabricação.
Dick também meteu sua colher noutro campo: a crítica social foi ingrediente importante
de sua receita, assim como é em
"Nevasca", de Stephenson, e
nisto o olhar de ambos herda o
desencanto noir e "quixotista"
(para não dizer comunista) de
Dashiell Hammett.
Second Life
O herói de "Nevasca" é Hiro
Protagonist, entregador de pizzas e criador de softwares, habitante de um mundo não mais
dominado pelo Estado, mas por
corporações mercenárias. Hiro, no mundo real, é empregado
da Cosa Nostra, uma dessas organizações, mas no universo
virtual chamado Metaverso é
um samurai lutando contra a
propagação de um vírus que
diluirá as fronteiras entre os
dois mundos.
O avatar de Hiro nesse universo paralelo ocupa a posição
privilegiada de ter sido um de
seus criadores, papel incomum
num lugar onde predomina o
darwinismo econômico do
mercado capitalista: nessa segunda vida os melhores papéis
(e a "felicidade" bônus que vem
com eles) são comprados por
muito dinheiro. Imagine o suplício de viver num lugar onde
todos são superestrelas do
rock. Bem, não precisa imaginar, hoje basta logar o Second
Life ou o Playstation Home.
O caldo complexo de Stephenson inclui criptografia e filosofia, além da atualização das
leis estéticas do western. O
guerreiro Hiro (da mesma forma que Case, em "Neuromancer", de William Gibson, ou
Neo, na trilogia "Matrix" dos irmãos Wachowski) é uma variação da figura do pistoleiro de
aluguel, um hacker cuja expertise é a manipulação da informação. Detentor do know-how,
Hiro pode acessar lugares inacessíveis a outros, é um jagunço
virtual a serviço do capital.
Para acessar o Metaverso,
porém, Hiro necessita estar em
casa, preso ao seu computador
desktop. É incrível como Stephenson antecipou a presença
da internet na vida contemporânea, mas não a nanificação
radical pela qual os computadores passaram nos últimos
anos. Sinal de que nem os mais
delirantes escritores chegam
aos pés dos cientistas atuais. E
quem diria que a ciência poderia se tornar algo tão divertido e
perigoso? Só a ficção, claro.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra)
NEVASCA
Autor: Neal Stephenson
Tradução: Fábio Fernandes
Editora: Aleph
Quanto: R$ 59 (págs. 440)
Avaliação: ótimo
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