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São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2003

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De olho no presente, Maria Antonia debate ensaio mais célebre de Roberto Schwarz publicado há 30 anos sobre um certo país que não muda

As idéias voltam a seu lugar

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

As idéias, ao menos hoje, estarão no lugar. O Centro Universitário Maria Antonia, onde funcionava nos anos 60 a faculdade de filosofia da USP, será às 20h palco para o debate de uma de suas crias mais engenhosas -"As Idéias Fora do Lugar", ensaio do crítico literário Roberto Schwarz, 65, que completa 30 anos.
Síntese envenenada do trabalho de uma geração de intelectuais que renovou a interpretação da história do Brasil, o texto -dinamite concentrada em 13 páginas- é uma espécie de lâmpada mágica, a partir da qual o autor iluminou não apenas a obra de Machado de Assis, cuja grandeza e novidade iria especificar depois, mas as particularidades e o destino do próprio país -nação periférica na ordem internacional, formada na convivência contraditória entre capitalismo e escravidão. Uma fratura exposta do capitalismo mundial.
Esses e outros nós que não nos edificam -inclusive o que se pode pensar do Brasil atual a partir da obra de Schwarz, por que não?- estarão em evidência na mesa de debates formada por três renomados representantes da ciência social uspiana: o sociólogo Francisco de Oliveira, o historiador Fernando Novais e o filósofo Paulo Arantes. Todos, craques de uma certa dialética brasileira, estarão literalmente em casa, do que pode derivar tanto a graça como os eventuais limites da discussão.

Cultura do favor
Mas o que são, afinal, as "idéias fora do lugar"? Em tradução pedestre, são as idéias da Europa oitocentista, como a igualdade perante a lei, a liberdade do trabalho, a autonomia do indivíduo, o ethos burguês e demais itens do arcabouço liberal que, transplantados para o Brasil pós-colonial, um país de base escravista, soavam como um disparate. Nas palavras de Schwarz, se a ideologia liberal na Europa "correspondia às aparências, encobrindo o essencial -a exploração do trabalho"-, aqui "as mesmas idéias seriam falsas em sentido diverso, por assim dizer, original".
O argumento, porém, tem um segundo passo, não menos importante. Além de proprietários e escravos -relação produtiva decisiva-, o país contava ainda com uma massa de "homens livres" e pobres, que dependiam fundamentalmente do favor dos de cima para ter acesso à vida social e aos bens materiais. "O agregado é a sua caricatura", afirma Schwarz, para quem "o favor é a nossa mediação quase universal". (Podemos acrescentar, de passagem, que a figura da empregada doméstica, se tem um lastro evidente no nosso passado escravocrata, é sobretudo o sucedâneo atual mais bem acabado do agregado e da cultura do favor.)
Montada essa equação complexa, Schwarz conclui que o liberalismo entre nós, percebido como fora do lugar, cumpria sua função ao "racionalizar" o momento de arbítrio que é próprio das relações de favor. "Assim, com método, atribui-se independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio", diz o crítico.
Esse, de maneira muito breve, o esquema armado pelo autor para explicar nosso imbróglio, sobre o qual Machado de Assis iria deitar e rolar. Numa palavra, Schwarz descobre nos romances de maturidade de Machado, notadamente nas "Memórias Póstumas de Brás Cubas", a formalização literária do processo social brasileiro.
A começar pelo narrador que, na sua volubilidade frenética, mimetiza o comportamento das elites locais, caracterizadas pelo vaivém incansável entre o respeito à ordem burguesa e sua infração, compondo um padrão de conduta que não se prende a nada, a não ser aos seus próprios caprichos, traço distintivo do paternalismo.
Nas palavras de Chico de Oliveira, "Machado alcança, a nos fiarmos em Roberto, um texto que representa o caráter nacional. A volubilidade do narrador é a volubilidade da sociedade brasileira".

Marxismo heterodoxo
"As Idéias Fora do Lugar" foi publicado pela primeira vez em 1973 na revista "Estudos", do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), do qual Fernando Henrique Cardoso era já então a principal figura. Em 1977, o ensaio reaparece em livro, como introdução de "Ao Vencedor as Batatas", primeira parte do estudo sobre Machado, que seria concluído 13 anos depois, com "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", de 1990.
De todos os intelectuais de sua geração, Schwarz é o que leva mais longe a crítica ao país que haviam, coletivamente, em grande medida redescoberto. A obra posterior do autor, composta de vários ensaios, pode ser vista como um contraponto cético ao espírito "industrializante" que ele próprio identificou no grupo que se reuniu em torno do Seminário Marx, no final dos anos 50.
O ambiente desenvolvimentista e a obsessão em achar uma saída para o país reduziram o alcance crítico da obra dos jovens intelectuais responsáveis pela incorporação heterodoxa do marxismo, à luz das especificidades brasileiras. Que o progresso, entre nós, siga repondo sob novas formas o atraso que ele deveria extirpar, é algo que deve se levar a sério para pensar o que foram os anos FHC e o que insinuam ser os anos Lula.
"As Idéias Fora do Lugar" iluminam o que não muda no Brasil.



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