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São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2003

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Idéias de outro lugar contestam obra de Schwarz

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Se o liberalismo no Brasil do século 19 "dava a impressão de estar fora do lugar", como esclareceu Roberto Schwarz, não era por se inserir em uma sociedade marcada pela escravidão, como defendia o crítico no seu famoso ensaio.
Senão, como explicar que os EUA de fins do século 18, que fez a Revolução antes dos franceses, mas em perfeita convivência com o escravismo, não tomasse como desgarrada sua cria dileta (o ideário liberal)?
Manolo Florentino, um historiador da terra de Machado de Assis, encontra solução ao gosto da dubiedade própria ao bruxo do Cosme Velho:
"Se no mundo anglo-saxão o liberalismo não foi encarado como uma doutrina fora do lugar, isso se deveu ao fato de que os americanos fizeram o que as colônias ibéricas jamais ousaram: considerar a escravidão um estado natural, e o escravo como não pertencente à ordem do humano".
Sem desmerecer a crueldade que nos é própria, só com esse requinte, diz o professor da UFRJ, foi possível a eles tornar o liberalismo e o indivíduo (excluídos os negros dessa condição) faces de uma mesma moeda, ao mesmo tempo em bom convívio com a escravidão.
A função do ideário liberal nos trópicos seria, dizia o uspiano, a de "justificar" o "arbítrio" das relações sociais fundadas no favor, racionalizando-as. Por causa da escravidão, que tinha como subproduto um conjunto de "homens livres" -marginais em relação à lógica do sistema-, muitos dependiam das benesses dos "grandes". Florentino ataca o pressuposto e a consequência. Começando pelo fim, ele reduz a "função" do liberalismo a um problema que em parte é da ordem da lógica -as relações fundadas no favor não precisariam de justificativa, a não ser sob o ponto de vista do próprio liberalismo.
Isso "deriva da antiga tradição do marxismo de procurar definir o objeto -no caso, o Brasil- mais pelo que ele não é do que em função do que realmente o singulariza", diz.
E o liberalismo, então, esse desgarrado? "Foi importante, sim, mas no campo da economia, na medida em que legitimava a propriedade, inclusive de escravos."
Uma objeção seria possível, do ponto de vista da tradição historiográfica da USP: os EUA, afinal, teriam uma classe de comerciantes -burgueses, digamos- sólida, o que não aconteceria no Brasil.
Mas o historiador fluminense, co-autor de uma teoria que propõe novas explicações para a economia colonial no país, pesquisou e descobriu que uma classe de comerciantes residentes no país desde pelo menos o século 18 negociava -escravos e outras mercadorias-, acumulava financeiramente e reinvestia por aqui.
Vão por terra muitos dos pressupostos de Schwarz. O topo da hierarquia econômica no país não era composto de fazendeiros, mas de grandes comerciantes. A lógica dessa sociedade não era fundada exclusivamente na relação centro-periferia com a Europa, tendo como função a transferência de recursos para a metrópole -que ficava limitada pelo simples fato de que os comerciantes eram residentes na colônia.
A lógica dessa sociedade era a da reprodução de uma estrutura hierárquica fundada no status da propriedade de terras e escravos. Daí que os comerciantes mais tarde na vida imobilizassem suas fortunas comprando fazendas e negros. "Na medida em que os dados empíricos não corroboram totalmente a realidade imaginada, boa parte do raciocínio fica comprometida", diz Florentino sobre Schwarz.


CONVERSAS LITERÁRIAS NA MARIANTONIA. Quando: hoje, às 20h, no Centro Universitário Maria Antonia (r. Maria Antonia, 294, Vila Buarque, SP, tel. 0/xx/11/3255-7188). Quanto: entrada franca.


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