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ARTIGO
Venceu a música
JOÃO CARLOS MARTINS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Era um final de tarde do último setembro quando me dirigi à Catedral de Colônia, na
Alemanha, e, sentando num
banco, comecei a refletir sobre o
labirinto que uma pessoa tem
que atravessar para encontrar a
sua verdade. Os ares de outono já
começavam a bater nessa cidade
que respira cultura 24 horas por
dia.
Naquela manhã, fui assistir,
numa sessão privada, ao documentário realizado pela cineasta
alemã Irene Langemann sobre a
minha vida e que foi patrocinado
por algumas fundações européias. Durante nove meses, Irene
entrou, eu diria, até em minha
privacidade, o que chegou a causar algumas discussões entre
nós. Checou arquivos de televisões européias, americanas e
brasileiras, jornais com críticas e
entrevistas, e, além disso, eu diria
que ela realizou um check-up físico, nos hospitais pelos quais
passei, e psicológico, com as pessoas que convivi.
Após ter obtido sucesso com
documentários realizados sobre
o Ballet Bolshoi e sobre os meninos prodígios do Conservatório
de Moscou, conseguiu o financiamento na França e na Alemanha para este novo desafio e, talvez por ter nascido na Sibéria e se
radicado na Alemanha, acompanhou os anos da Guerra Fria e
aprendeu nestes 45 anos a penetrar na alma de seus personagens, o que a tornou uma cineasta especial.
Ao final da exibição, eu estava
sem graça, com lágrimas nos
olhos, não querendo olhar para
os diretores das fundações que
aplaudiam o filme. Surpreendentemente, quando olhei para
eles, verifiquei que também tinham lágrimas. Sentado no banco da Catedral, pensei que estas
não eram de tristeza, mas, sim,
de esperança.
Em uma hora e 40 minutos pude ver meus dramas cirúrgicos
quando criança, meus estudos
iniciais, o sucesso nos anos 60,
meu primeiro acidente jogando
futebol, o primeiro abandono da
música durante sete anos, por
falta de maturidade, meu período no mercado financeiro, minha agência para promover lutas
de boxe, a volta à música... o início da gravação da obra de
Bach... novamente o reconhecimento público. O segundo abandono da música por sete anos,
por causa do Mal de Lehr, a companhia de construção, os problemas com a justiça em virtude de
duas campanhas eleitorais.
Finalmente a volta à música
após uma carta de meu extraordinário pai, o final da gravação
da obra completa de Bach, o sucesso nos EUA seguido de um
assalto na Bulgária, que me levou
durante um ano ao Jackson Memorial Hospital em Miami para
a reprogramação cerebral, a luta
desesperada para continuar tocando, a perda da mão direita, os
concertos só com a mão esquerda e, finalmente, a última cirurgia na mão esquerda e o fim da
atividade como pianista.
Começo
Seria o fim. Não, é só o começo,
pois desta vez sobrou a música e,
além das "master class" no exterior, Deus levou-me ao encontro
com os jovens e hoje dirijo a Faculdade de Música do Centro
Universitário UniFiam-Faam e
lá, após encontrar uma coordenadora, um corpo discente e docente maravilhosos, perguntei a
mim mesmo o que fazer com os
jovens que não podem estudar
música, e, com a ajuda da administração superior, conseguimos
fazer um acordo com o Exército
da Salvação para reintegrar jovens de liberdade assistida da Febem à sociedade.
Os primeiros encontros foram
fascinantes, os professores e os
jovens foram se aproximando timidamente, ganhando coragem,
iniciando uma longa jornada
que deverá ganhar força nacional, já que veio ao encontro dos
ideais de meu amigo Cristovam
Buarque, que se apaixonou pela
idéia. A melhor notícia eu recebi
quando um dos jovens enviou-nos uma carta dizendo que a
música venceu o crime.
Por outro lado estamos resgatando a memória daqueles que
não tiveram um verdadeiro reconhecimento em nosso país. É
o caso de Guiomar Novaes, idolatrada nos EUA e que, apesar de
algumas ações isoladas, como
um livro, um documentário e as
atividades em São João da Boa
Vista, merece um reverenciamento muito maior pela genial
pianista que foi.
Hoje iniciei estudos de regência com os maestros Abel Rocha,
Walter Lourenção e Júlio Medaglia, e, apesar de meus 63 anos,
estou fascinado pelo fato de continuar na música e expressar minhas idéias interpretativas dos
grandes mestres.
Para aqueles que gostaram ou
não gostaram da forma como eu
transmiti minhas emoções eu digo: continuem sintonizados.
Por estas razões eu concluí que
as lágrimas em Colônia, na Alemanha, não eram nem de tristeza nem de esperança, eram de
alegria.
João Carlos Martins, 63, é pianista e
diretor da Faculdade de Música do Centro Universitário UniFiam-Faam
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