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São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2003

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NELSON ASCHER

Confucianos vs. taoístas

As teorias a respeito da intelectualidade não são poucas. Deixando de lado que, não raro, a mente de um indivíduo se divide em noções contraditórias que, ademais, alteram-se com o tempo, basta indicar que, a cada cabeça, corresponde (pelo menos) uma sentença. Mas, como não é a multiplicidade de girafas, com suas manchas variadas e seus diferentes pescoços, que nos impede de dizer que Deus ou Darwin criou um bicho facilmente reconhecível, de modo semelhante podemos classificar essas teorias e, com isso, os intelectuais, em duas grandes categorias.
De um lado está o modelo europeu e, do outro, o americano.
O intelectual que se conforma ao primeiro descende menos das antigas civilizações mediterrâneas que das tribos que, nos primeiros séculos da era cristã, ocuparam o continente. É das guildas de bardos que cantavam as glórias dos monarcas nas pequenas cortes galesas ou irlandesas e do clero que, quando não se refugiava em mosteiros, dedicava-se a converter pagãos assegurando de início a adesão da realeza, que, através do corporativismo medieval e dos filósofos iluministas instalados na cozinha dos déspotas esclarecidos, provém a intelectualidade euroforme.
Quanto aos que seguem o modelo americano, embora se considerem, não de todo sem razão, inspirados pelo Antigo Testamento e pelas civilizações clássicas, eles são filhos da convergência da invenção de Guttenberg com a reforma protestante. Graças a Guttenberg, o gigantesco banco de dados que uns chamam de tradição e outros, de universo, tornou-se disponível aos interessados, por um preço módico e declinante. A Reforma, por seu turno, incentivou-os, seja dispensando os guias de museu, seja contornando os porteiros de biblioteca, a frequentarem o banco de dados por conta própria, de modo a chegarem, segundo suas próprias luzes às suas próprias conclusões.
Se o euroforme é um clérigo ao qual, após anos num seminário, os superiores confiam uma paróquia, o ameriforme é o dissidente que, tendo lido e relido as escrituras, sai em busca de uma congregação que, embora ainda inexista, depende apenas dele para ser formada. O euroforme não precisa discutir com o rebanho: sua tarefa é oficiar cerimônias, transmitindo-lhe a doutrina como a recebeu de cima. Uma vez que, dedicado e subserviente, atraia a atenção de seus superiores, ele pode sonhar com um arcebispado, com a púrpura cardinalícia e, quem sabe, com o papado. O ameriforme, porque vive num mundo competitivo, tem de se perguntar a cada manhã se sua congregação ainda estará lá, ou se foi no entretempo cativada por um pregador melhor.
Nenhum dos dois modelos está livre de problemas. O europeu, malgrado resguardar ordem e consenso, requer às vezes a intervenção do braço secular. O americano não só gera, de quando em quando, seitas marginais e até fanáticas, como acena com o perigo de, por causa de um sucesso excessivo, induzir o pregador a criar sua igreja e uma nova clerezia. Antevendo tal risco, a constituição norte-americana oferece, em sua primeira emenda, a garantia de que, com a manutenção de uma mercado aberto de idéias e opiniões, isso não há de ocorrer: "O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos."
Esses princípios fundamentais que, nos EUA, asseguravam antes a separação entre religião e Estado, e hoje em dia mantém apartados o Estado e a cultura, isto é, o domínio dos intelectuais, não prevalecem na Europa. Diz-se que uma das mais arraigadas causas da divergência euro-americana consiste no fato de que, enquanto as sociedades européias se secularizaram quase completamente, a americana retém muito de religioso. É verdade. Ocorre, porém, que, se os EUA mantiveram-se tolerantemente religiosos, os europeus adotaram um secularismo tão intolerante quanto havia sido outrora sua religiosidade.
Encurtando a história inteira, esses desenvolvimentos divergentes conduziram ao seguinte. No Velho Mundo, os intelectuais galgam laboriosamente uma pirâmide institucional para, uma vez chegados ao ápice, aconselharem o monarca e, em seguida, convencerem, auxiliados pelos meios de comunicação, as massas de quão sábias foram as decisões tomadas nas alturas. A intelectualidade do Novo Mundo, que idealmente deve esse papel ao mérito de suas idéias, procura aglutinar em torno de suas propostas cada vez mais pessoas para que, no devido tempo, todos veiculem, pelos meios de comunicação e/ou pelas urnas, o que quer que tenham decidido a seus servidores, ou seja, os governantes.
O confronto entre ambos os tipos de intelectualidade, não obstante ser agora planetário, nada tem de novo, pois já fora prefigurado, dois milênios e meio atrás, na China, onde se contrapuseram o confucianismo da casta administrativa e o liberalismo individualista dos taoístas. O "Tao Te Tching" de Lao Tzu (ou o "Roteiro da Retidão" do Velho Guia) é uma obra que segue desafiando a suposta onisciência dos hierarcas burocráticos e acadêmicos. Tal desafio se encontra adequadamente resumido em seu último capítulo: "Verdades desagradam/ Inverdades agradam/ O certo é inconvincente/ O convincente é incerto/ O culto não ostenta/ O ostentador é inculto/ Quem sabe não o oculta/ Quanto mais doe mais tem/ E doando se enriquece/ A rota celestial/ Traz dita não desdita/ Quem sabe atém-se à rota/ Atuando sem atrito".



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