|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
Confucianos vs. taoístas
As teorias a respeito da intelectualidade não são poucas. Deixando de lado que, não
raro, a mente de um indivíduo se
divide em noções contraditórias
que, ademais, alteram-se com o
tempo, basta indicar que, a cada
cabeça, corresponde (pelo menos)
uma sentença. Mas, como não é a
multiplicidade de girafas, com
suas manchas variadas e seus diferentes pescoços, que nos impede
de dizer que Deus ou Darwin
criou um bicho facilmente reconhecível, de modo semelhante podemos classificar essas teorias e,
com isso, os intelectuais, em duas
grandes categorias.
De um lado está o modelo europeu e, do outro, o americano.
O intelectual que se conforma
ao primeiro descende menos das
antigas civilizações mediterrâneas que das tribos que, nos primeiros séculos da era cristã, ocuparam o continente. É das guildas
de bardos que cantavam as glórias dos monarcas nas pequenas
cortes galesas ou irlandesas e do
clero que, quando não se refugiava em mosteiros, dedicava-se a
converter pagãos assegurando de
início a adesão da realeza, que,
através do corporativismo medieval e dos filósofos iluministas instalados na cozinha dos déspotas
esclarecidos, provém a intelectualidade euroforme.
Quanto aos que seguem o modelo americano, embora se considerem, não de todo sem razão,
inspirados pelo Antigo Testamento e pelas civilizações clássicas,
eles são filhos da convergência da
invenção de Guttenberg com a reforma protestante. Graças a Guttenberg, o gigantesco banco de
dados que uns chamam de tradição e outros, de universo, tornou-se disponível aos interessados, por
um preço módico e declinante. A
Reforma, por seu turno, incentivou-os, seja dispensando os guias
de museu, seja contornando os
porteiros de biblioteca, a frequentarem o banco de dados por conta
própria, de modo a chegarem, segundo suas próprias luzes às suas
próprias conclusões.
Se o euroforme é um clérigo ao
qual, após anos num seminário,
os superiores confiam uma paróquia, o ameriforme é o dissidente
que, tendo lido e relido as escrituras, sai em busca de uma congregação que, embora ainda inexista, depende apenas dele para ser
formada. O euroforme não precisa discutir com o rebanho: sua tarefa é oficiar cerimônias, transmitindo-lhe a doutrina como a recebeu de cima. Uma vez que, dedicado e subserviente, atraia a
atenção de seus superiores, ele pode sonhar com um arcebispado,
com a púrpura cardinalícia e,
quem sabe, com o papado. O
ameriforme, porque vive num
mundo competitivo, tem de se
perguntar a cada manhã se sua
congregação ainda estará lá, ou
se foi no entretempo cativada por
um pregador melhor.
Nenhum dos dois modelos está
livre de problemas. O europeu,
malgrado resguardar ordem e
consenso, requer às vezes a intervenção do braço secular. O americano não só gera, de quando em
quando, seitas marginais e até fanáticas, como acena com o perigo
de, por causa de um sucesso excessivo, induzir o pregador a criar
sua igreja e uma nova clerezia.
Antevendo tal risco, a constituição norte-americana oferece, em
sua primeira emenda, a garantia
de que, com a manutenção de
uma mercado aberto de idéias e
opiniões, isso não há de ocorrer:
"O Congresso não legislará no
sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se
reunir pacificamente, e de dirigir
ao governo petições para a reparação de seus agravos."
Esses princípios fundamentais
que, nos EUA, asseguravam antes
a separação entre religião e Estado, e hoje em dia mantém apartados o Estado e a cultura, isto é, o
domínio dos intelectuais, não
prevalecem na Europa. Diz-se
que uma das mais arraigadas
causas da divergência euro-americana consiste no fato de que, enquanto as sociedades européias se
secularizaram quase completamente, a americana retém muito
de religioso. É verdade. Ocorre,
porém, que, se os EUA mantiveram-se tolerantemente religiosos,
os europeus adotaram um secularismo tão intolerante quanto havia sido outrora sua religiosidade.
Encurtando a história inteira,
esses desenvolvimentos divergentes conduziram ao seguinte. No
Velho Mundo, os intelectuais galgam laboriosamente uma pirâmide institucional para, uma vez
chegados ao ápice, aconselharem
o monarca e, em seguida, convencerem, auxiliados pelos meios de
comunicação, as massas de quão
sábias foram as decisões tomadas
nas alturas. A intelectualidade do
Novo Mundo, que idealmente deve esse papel ao mérito de suas
idéias, procura aglutinar em torno de suas propostas cada vez
mais pessoas para que, no devido
tempo, todos veiculem, pelos
meios de comunicação e/ou pelas
urnas, o que quer que tenham decidido a seus servidores, ou seja,
os governantes.
O confronto entre ambos os tipos de intelectualidade, não obstante ser agora planetário, nada
tem de novo, pois já fora prefigurado, dois milênios e meio atrás,
na China, onde se contrapuseram
o confucianismo da casta administrativa e o liberalismo individualista dos taoístas. O "Tao Te
Tching" de Lao Tzu (ou o "Roteiro da Retidão" do Velho Guia) é
uma obra que segue desafiando a
suposta onisciência dos hierarcas
burocráticos e acadêmicos. Tal
desafio se encontra adequadamente resumido em seu último
capítulo: "Verdades desagradam/
Inverdades agradam/ O certo é
inconvincente/ O convincente é
incerto/ O culto não ostenta/ O ostentador é inculto/ Quem sabe
não o oculta/ Quanto mais doe
mais tem/ E doando se enriquece/
A rota celestial/ Traz dita não
desdita/ Quem sabe atém-se à rota/ Atuando sem atrito".
Texto Anterior: Teatro: "Chicago" faz "peneira" sob olhar da matriz Próximo Texto: Panorâmica - Livro: "Folha Explica Adorno" será lançado hoje Índice
|