São Paulo, sexta-feira, 13 de outubro de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Como a história se repete

Pensaram que Cristo fosse um terrorista argelino ou um travesti do Bois de Boulogne

RECEBI, POR via postal, duas mensagens do próprio Cristo. Na verdade, trata-se do sr. Inri Cristo. O nome é estranho, mas é esse mesmo. Anos atrás, o sr. Inri Cristo chamava-se Antuérpio Gonçalves Mendes e nada de admirar que tivesse a necessidade de mudar de nome. Morava em Curitiba e exercia o nobre ofício de bancário.
Deu-se que o sr. Antuérpio ouviu vozes, convocando-o a assumir a sua verdadeira identidade, que outra não era senão a de Filho Primogênito do Deus Único e Verdadeiro. Abandonou a família, que o tomava como vulgar maconheiro, abandonou as vestes profanas e o ofício, passando a se dedicar, em regime "full time", à sua inarredável missão. Fisicamente, até que se parece com o próprio: tem barbas e usa umas roupas nazarenas. Olhado apressadamente, parece mesmo com o Cristo, tal como o pintaram os mestres da Renascença.
Para quem pensa ter sido mole para o sr. Inri Cristo assumir a postura e o visual do próprio Filho Primogênito do Deus Único e Verdadeiro, aí vão alguns lances de sua biografia. No Pará, ele interrompeu uma missa solene na catedral, subiu ao altar e ali depredou todos os ídolos, esbofeteou o padre, deu um pontapé no traseiro da presidente do Apostolado da Oração, improvisou um açoite e, tal como Cristo, expulsou os vendilhões da Casa do Pai. Evidente que a polícia local entrou em ação e, o sr. Cristo foi levado a uma delegacia, onde ocorreu o seguinte diálogo:
- Seu nome: Inri Cristo
- Sua filiação: sou Filho Primogênito do Deus Único e Verdadeiro.
- Sua profissão: Deus.
- Sua idade: Sou Eterno, não tenho princípio nem fim.
- Seu endereço: Mão Direita de Deus Padre Todo-Poderoso.
- Tem sinais particulares? Sou o Salvador do Mundo.
O comissário transcreveu os dados na ficha policial, mas prudentemente passou o abacaxi para o delegado, o qual achou a história um pouco estranha e decidiu consultar o bispo, dele recebendo a sugestão de prender o indigitado, com base nos abundantes artigos do Código Penal que o sr. Cristo flagrantemente violara. O delegado pensou um pouco e saiu-se com uma frase que mereceria lugar na história: "Séculos atrás, já prenderam um Cristo e o mataram. Não vou entrar na mesma fria!" O bispo, sem poder se queixar a si próprio, foi se queixar ao governador, e o sr. Cristo acabou no hospício, cumprindo-se assim a previsão de Giovanni Papini, segundo a qual, se Cristo voltasse à Terra, os homens não o matariam no calvário, mas o meteriam num hospício.
Além da aventura paraense, o sr. Cristo viveu outra façanha em Paris. Depois de passar frio e fome nas ruas da cidade, foi dar com os costados num bistrô da pesada, antro de prostitutas, ladrões, assassinos e drogados. Tal como aconteceu 20 séculos atrás, ali foi reconhecido e escutado. Como paga, Cristo perdoou os pecados de todos. Fizeram depois uma vaquinha e descolaram uns francos que davam para dormir duas ou três noites em hospedaria.
Um dos freqüentadores do bistrô prontificou-se a levá-lo. Tomaram o metrô -Cristo num metrô de Paris mereceria, na pior das hipóteses, o filme que Buñuel não fez- e, aproveitando a parada na estação de Odeon, o cara se escafedeu com o dinheiro do Filho Primogênito do Deus Único e Verdadeiro. Novamente traído por dinheiro, Inri Cristo atravessou a pé toda a "sodomista e gomorrenta Paris", até que encontrou um bosque e ali decidi pernoitar. Orou fervorosamente ao seu Pai, pedindo que lhe enviasse aquele anjo que o havia consolado no Horto das Oliveiras. Dessa vez, bastava que lhe arranjasse um cobertor. Mas o Pai Todo Poderoso, ou não teve poder para atender ao Filho, ou decididamente queria provar seu primogênito. Não lhe apareceram nem anjo nem cobertor. Cristo foi preso de madrugada, enregelado e faminto. Ao policial que lhe pediu os "papiers", ele se recusou a se identificar. Calou-se, tal como o outro: "Jesus autem tacebat".
Pensaram que Cristo fosse um terrorista argelino ou um travesti do Bois de Boulogne malsucedido numa noite de frio. Botaram Cristo num suadouro até que ele confessasse. Como todos os torturados, Cristo confessou tudo: era mesmo Filho de Deus, o Salvador do Mundo. Os franceses, desde que deixaram a Indochina, adquiriram apreciável "know-how" em não se meter em encrencas e decidiram botar o sr. Inri Cristo num cargueiro, que, após escalas em metade do mundo, despejou o Filho de Deus entre nós. E entre nós permanece, aguardando sua hora de aparecer num programa de TV no horário nobre.


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