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CARLOS HEITOR CONY
Como a história se repete
Pensaram que Cristo fosse um terrorista argelino ou um travesti
do Bois de Boulogne
RECEBI, POR via postal, duas
mensagens do próprio Cristo.
Na verdade, trata-se do sr.
Inri Cristo. O nome é estranho, mas
é esse mesmo. Anos atrás, o sr. Inri
Cristo chamava-se Antuérpio Gonçalves Mendes e nada de admirar
que tivesse a necessidade de mudar
de nome. Morava em Curitiba e
exercia o nobre ofício de bancário.
Deu-se que o sr. Antuérpio ouviu
vozes, convocando-o a assumir a sua
verdadeira identidade, que outra
não era senão a de Filho Primogênito do Deus Único e Verdadeiro.
Abandonou a família, que o tomava
como vulgar maconheiro, abandonou as vestes profanas e o ofício,
passando a se dedicar, em regime
"full time", à sua inarredável missão.
Fisicamente, até que se parece com
o próprio: tem barbas e usa umas
roupas nazarenas. Olhado apressadamente, parece mesmo com o Cristo, tal como o pintaram os mestres
da Renascença.
Para quem pensa ter sido mole para o sr. Inri Cristo assumir a postura
e o visual do próprio Filho Primogênito do Deus Único e Verdadeiro, aí
vão alguns lances de sua biografia.
No Pará, ele interrompeu uma missa solene na catedral, subiu ao altar e
ali depredou todos os ídolos, esbofeteou o padre, deu um pontapé no
traseiro da presidente do Apostolado da Oração, improvisou um açoite
e, tal como Cristo, expulsou os vendilhões da Casa do Pai. Evidente que
a polícia local entrou em ação e, o sr.
Cristo foi levado a uma delegacia,
onde ocorreu o seguinte diálogo:
- Seu nome: Inri Cristo
- Sua filiação: sou Filho Primogênito do Deus Único e Verdadeiro.
- Sua profissão: Deus.
- Sua idade: Sou Eterno, não tenho princípio nem fim.
- Seu endereço: Mão Direita de
Deus Padre Todo-Poderoso.
- Tem sinais particulares? Sou o
Salvador do Mundo.
O comissário transcreveu os dados na ficha policial, mas prudentemente passou o abacaxi para o delegado, o qual achou a história um
pouco estranha e decidiu consultar
o bispo, dele recebendo a sugestão
de prender o indigitado, com base
nos abundantes artigos do Código
Penal que o sr. Cristo flagrantemente violara. O delegado pensou um
pouco e saiu-se com uma frase que
mereceria lugar na história: "Séculos atrás, já prenderam um Cristo e o
mataram. Não vou entrar na mesma
fria!" O bispo, sem poder se queixar
a si próprio, foi se queixar ao governador, e o sr. Cristo acabou no hospício, cumprindo-se assim a previsão de Giovanni Papini, segundo a
qual, se Cristo voltasse à Terra, os
homens não o matariam no calvário,
mas o meteriam num hospício.
Além da aventura paraense, o sr.
Cristo viveu outra façanha em Paris.
Depois de passar frio e fome nas
ruas da cidade, foi dar com os costados num bistrô da pesada, antro de
prostitutas, ladrões, assassinos e
drogados. Tal como aconteceu 20
séculos atrás, ali foi reconhecido e
escutado. Como paga, Cristo perdoou os pecados de todos. Fizeram
depois uma vaquinha e descolaram
uns francos que davam para dormir
duas ou três noites em hospedaria.
Um dos freqüentadores do bistrô
prontificou-se a levá-lo. Tomaram o
metrô -Cristo num metrô de Paris
mereceria, na pior das hipóteses, o
filme que Buñuel não fez- e, aproveitando a parada na estação de
Odeon, o cara se escafedeu com o dinheiro do Filho Primogênito do
Deus Único e Verdadeiro. Novamente traído por dinheiro, Inri Cristo atravessou a pé toda a "sodomista
e gomorrenta Paris", até que encontrou um bosque e ali decidi pernoitar. Orou fervorosamente ao seu Pai,
pedindo que lhe enviasse aquele anjo que o havia consolado no Horto
das Oliveiras. Dessa vez, bastava que
lhe arranjasse um cobertor. Mas o
Pai Todo Poderoso, ou não teve poder para atender ao Filho, ou decididamente queria provar seu primogênito. Não lhe apareceram nem anjo nem cobertor. Cristo foi preso de
madrugada, enregelado e faminto.
Ao policial que lhe pediu os "papiers", ele se recusou a se identificar.
Calou-se, tal como o outro: "Jesus
autem tacebat".
Pensaram que Cristo fosse um
terrorista argelino ou um travesti do
Bois de Boulogne malsucedido numa noite de frio. Botaram Cristo
num suadouro até que ele confessasse. Como todos os torturados,
Cristo confessou tudo: era mesmo
Filho de Deus, o Salvador do Mundo. Os franceses, desde que deixaram a Indochina, adquiriram apreciável "know-how" em não se meter
em encrencas e decidiram botar o sr.
Inri Cristo num cargueiro, que, após
escalas em metade do mundo, despejou o Filho de Deus entre nós. E
entre nós permanece, aguardando
sua hora de aparecer num programa
de TV no horário nobre.
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