São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2007

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Vargas Llosa: latidos e mordidas


Romance se impõe por sua contundência áspera e forma intrincada, vestígio de um autor que o tempo engoliu

"NÃO DEIXAREI ninguém dizer que [a juventude] é o tempo mais belo da vida." A frase é de Paul Nizan, romancista, jornalista, comunista, amigo de Sartre e autor de "Aden, Arábia".
O jovem Vargas Llosa (1936) escolheu-a para epígrafe da segunda parte do seu "A Cidade e os Cachorros" (1962), romance de formação passado nos alojamentos do colégio militar Leoncio Prado, em Lima, em que ele próprio havia estudado poucos anos antes.
Não sei se para o sorridente campeão das causas neoliberais, candidato à presidência do Peru derrotado por Fujimori em 1990, membro da Real Academia Espanhola, colunista do "El Pais", a quem o Prêmio Nobel escapou por um triz este ano, a frase vale. Para o romancista, o não é aposta segura. Mesmo que o alter ego literário que atravessa o recente "Travessuras da Menina Má" (2006) seja ainda o do escritor cosmopolita, errante, e o resultado ainda se apóie em receita realista a partir de matéria biográfica, a acomodação corroeu, e muito, o gume de sua ficção, hoje, ladrando mais que mordendo. Muito da convicção na "verdade das mentiras" (sua fórmula flaubertiana para valorizar a invenção ficcional) de "A Cidade e os Cachorros" e a gana estilística do jovem autor se perdeu desde então no pastiche de si mesmo. No romance de 1962, Llosa media-se com um grande tema -os anos de escola- e entregou-se a ele com a energia represada do recém-graduado em letras, jornalista e crítico literário, aspirante a romancista, sem glória ou salário, que rompeu com a família bem posta para casar-se, aos 18 anos, com uma tia por afinidade (pano de fundo do divertido "Tia Júlia e o Escrevinhador", 1977).
Os "cachorros" do título são os calouros no colégio militar, sacos de pancada que experimentam na pele disciplina e repressão que há muito degeneraram e deixaram de ser forças civilizatórias. A fachada democrática só se mantém à custa de vistas grossas para as válvulas de escape e expedientes de sobrevivência clandestinos (cumplicidade, camaradagem, mas também humilhação e maus tratos). Como e quando afloram as diferenças -de caráter, de classe, de vocações- num ambiente de hierarquia e regras rígidas?
Multiplicando as vozes na narrativa, seguindo trajetórias cruzadas como as de Alberto, aspirante a poeta e membro da elite para quem o colégio é um desvio de percurso, e Jaguar, miserável aprendiz de malandro que resiste, feroz, ao laço da instituição, o alcance do romance se expande para além dos limites do pátio de exercícios militares, em que uma cadela vira-lata, a Malparada, e uma alpaca representam o último elo de uma cadeia de abusos. Traz a geografia social de Lima reproduzida em metonímia nos limites do colégio. Por sua contundência áspera e forma intrincada, "A Cidade e os Cachorros" se impõe, vestígio de um Vargas Llosa que o tempo engoliu.


A CIDADE E OS CACHORROS
Autor: Mario Vargas Llosa
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 43,90 (373 págs.)
Avaliação: bom



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