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Análise/teatro
Autran era a paixão em cena
Culto e estudioso, intérprete foi modelo para a profissão e atravessaria o novo século sem se esgotar
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Paulo Autran será sempre a referência do ator
brasileiro. Foi o homem
certo na hora certa, em vários
momentos-chave. Quando o
teatro Copacabana precisou de
um galã, em 1949, estreou como Zeus, já atraindo todas as
atenções, em "Um Deus Dormiu Lá em Casa". De Otelo ao
Avarento, viabilizou o repertório clássico, sempre atento
aos diretores, dramaturgos e
atores novos.
Talvez de sua formação em
direito tenha vindo seu amor
pela palavra clara, pelo gesto
elegante, pela persuasão serena. Quem o viu em cena guarda,
independente da qualidade do
texto, a memória viva de sua inteligência, sem nunca perder a
discrição nem o contato com o
colega de palco.
Tido como vaidoso, nunca
era fútil: tinha um orgulho
imenso de sua profissão, sempre atento para que ela não fosse subestimada. Na sabatina da
Folha, em 2005, lamentou que
a crítica não pudesse se dedicar
mais à avaliação de cada entonação, limitando-se ao culto de
personalidades.
Tendo sido formado por atores-diretores no Teatro Brasileiro de Comédia, soube, enquanto diretor, retribuir a generosidade, exigindo marcas
precisas, valorizando o ator antes do espetáculo. Interessava-se por um tema, sem se preocupar com o sucesso -basta citar
as várias vezes que voltou, enquanto ator e diretor, a encenar
os "Seis Personagens à Procura
de um Autor", de Pirandello.
Sua técnica, apurada ao longo de décadas, em uma dedicação constante, guardava um selo de qualidade inconfundível.
Mas Paulo Autran não era apenas um nome nem mesmo um
rosto: era uma paixão em cena.
Usasse ele as cartas que tinha
na manga ou se aventurasse
por caminhos novos, nunca
deixava de transparecer o prazer que tinha ao interpretar.
Era emocionante, no ato final
de "O Avarento", sua última
montagem, vê-lo sentando em
cena, assistindo a seus colegas:
uma generosidade não só com
iniciantes mas com a profissão.
Deixa assim um modelo inequívoco de como deve ser um
ator: culto, estudioso, capaz de
traduzir os textos estrangeiros
que encena, capaz de dirigir
seus colegas sem impor seu estilo pessoal, sempre atento ao
que acontece nos palcos do
mundo, seja na Broadway ou na
praça Roosevelt, que freqüentava também, e que agora lhe
faz uma homenagem não planejada como póstuma.
Apesar de tantas décadas de
serviço, não deixa a impressão
de uma carreira consumada: tinha uma grande pilha de textos
na gaveta e uma fila na bilheteria sempre pronta a ser formada. Pena que a imortalidade
que advém do talento seja apenas simbólica. Paulo Autran
atravessaria o novo século sem
se esgotar, sempre se reinventando, sempre redescobrindo o
prazer de estar em cena. Talvez
a melhor homenagem a Autran
seja considerar "Hamlet" sua
grande criação: uma montagem
que ainda não tinha feito.
Não são poucos, felizmente,
os que seguram o bastão nessa
dura corrida de revezamento
que é o teatro brasileiro. Uma
corrida sem chegada, na qual a
vitória não é a do primeiro apenas mas de todos os que galvanizam a platéia com o prazer do
corpo em movimento. A vida de
Paulo Autran sempre foi o teatro. Então, Paulo Autran não
morrerá nunca.
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