São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2007

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Análise/teatro

Autran era a paixão em cena

Culto e estudioso, intérprete foi modelo para a profissão e atravessaria o novo século sem se esgotar

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Paulo Autran será sempre a referência do ator brasileiro. Foi o homem certo na hora certa, em vários momentos-chave. Quando o teatro Copacabana precisou de um galã, em 1949, estreou como Zeus, já atraindo todas as atenções, em "Um Deus Dormiu Lá em Casa". De Otelo ao Avarento, viabilizou o repertório clássico, sempre atento aos diretores, dramaturgos e atores novos.
Talvez de sua formação em direito tenha vindo seu amor pela palavra clara, pelo gesto elegante, pela persuasão serena. Quem o viu em cena guarda, independente da qualidade do texto, a memória viva de sua inteligência, sem nunca perder a discrição nem o contato com o colega de palco.
Tido como vaidoso, nunca era fútil: tinha um orgulho imenso de sua profissão, sempre atento para que ela não fosse subestimada. Na sabatina da Folha, em 2005, lamentou que a crítica não pudesse se dedicar mais à avaliação de cada entonação, limitando-se ao culto de personalidades.
Tendo sido formado por atores-diretores no Teatro Brasileiro de Comédia, soube, enquanto diretor, retribuir a generosidade, exigindo marcas precisas, valorizando o ator antes do espetáculo. Interessava-se por um tema, sem se preocupar com o sucesso -basta citar as várias vezes que voltou, enquanto ator e diretor, a encenar os "Seis Personagens à Procura de um Autor", de Pirandello.
Sua técnica, apurada ao longo de décadas, em uma dedicação constante, guardava um selo de qualidade inconfundível. Mas Paulo Autran não era apenas um nome nem mesmo um rosto: era uma paixão em cena. Usasse ele as cartas que tinha na manga ou se aventurasse por caminhos novos, nunca deixava de transparecer o prazer que tinha ao interpretar. Era emocionante, no ato final de "O Avarento", sua última montagem, vê-lo sentando em cena, assistindo a seus colegas: uma generosidade não só com iniciantes mas com a profissão.
Deixa assim um modelo inequívoco de como deve ser um ator: culto, estudioso, capaz de traduzir os textos estrangeiros que encena, capaz de dirigir seus colegas sem impor seu estilo pessoal, sempre atento ao que acontece nos palcos do mundo, seja na Broadway ou na praça Roosevelt, que freqüentava também, e que agora lhe faz uma homenagem não planejada como póstuma.
Apesar de tantas décadas de serviço, não deixa a impressão de uma carreira consumada: tinha uma grande pilha de textos na gaveta e uma fila na bilheteria sempre pronta a ser formada. Pena que a imortalidade que advém do talento seja apenas simbólica. Paulo Autran atravessaria o novo século sem se esgotar, sempre se reinventando, sempre redescobrindo o prazer de estar em cena. Talvez a melhor homenagem a Autran seja considerar "Hamlet" sua grande criação: uma montagem que ainda não tinha feito.
Não são poucos, felizmente, os que seguram o bastão nessa dura corrida de revezamento que é o teatro brasileiro. Uma corrida sem chegada, na qual a vitória não é a do primeiro apenas mas de todos os que galvanizam a platéia com o prazer do corpo em movimento. A vida de Paulo Autran sempre foi o teatro. Então, Paulo Autran não morrerá nunca.


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