São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NINA HORTA

Cozinha "tecno-emocional'


A pessoa sozinha não conta mais, eles interagem e aprendem uns com os outros

FUI AOS três dias do espetacular Mesa Tendências, as palestras que incluíram os chefs modernos espanhóis, que tanta polêmica e animação vêm causando em todo mundo que se interessa por comida. Quis digerir tudo para os leitores, mas ainda não consegui.
Fico como um barco à deriva, uma hora me emociono toda, outra acho graça na bobeira, sussurro com meus botões que tantos anos de técnica neste mundo que já foi à Lua não pode trazer só a "esferificação", a gelificação, a espuma...
Vou procurar um artigo que escrevi sobre o primeiro livro de Ferran Adrià, em 2001. Mais ou menos isso, e, como não está ipsis litteris, não vou colocar aspas.
(O restaurante) Os cozinheiros, sempre espanhóis, estão atentos à cultura do país e às mais novas tecnologias. Devem ser, antes de tudo, químicos, prontos a elaborar novos conceitos embasados nos antigos, explicados pela ciência, mas cheios de graça e humor. O bom efeito final depende de todos e de todos os sentidos. Texturas, veludos, terciopelos, picantes gelatinas, quentes sorvetes, pés de galinha em torresmo, flotantes espumas de caviar, minirrisotos de brotos. E na minha cabeça tocam sinos, já ouvi isso, já sei disso, onde foi, o que é? Eureka! No manifesto de cozinha futurista de Marinetti, de 1909.
Desvairados, os futuristas italianos afirmavam o quanto era importante a alimentação para a capacidade criativa, fecundadora e agressiva das raças. E as comidas que inventavam, para 1909, muito loucas! Sorvete de lua, caldo de rosas e sol.
Chuva de fios açucarados; espuma excitante de Cinzano. Deveria haver harmonia nos cristais, na louça e na decoração com o alimento servido à mesa. O uso de perfumes para favorecer a degustação. (Nesta época, o El Bulli tinha um spray de cheiro de peixe.) A apresentação muito rápida de muitos pratos com pequenas porções que contivessem muitos sabores; a adoção de instrumentos científicos na cozinha-laboratório. Ozonizadores, lâmpadas ultravioleta, centrífugas para sucos, moinhos coloidais para fazer farinhas. Indicadores químicos para corrigir eventuais erros.
Assim cozinhava Marinetti a sua insurreição. Cozinhavam como Ferran, que acrescenta uma coisa muito simpática e da qual não o vejo mais falar nos livros novos. "Existe um elemento que não se aprende em nenhuma instituição do mundo. É intangível, etéreo, inexplicável; é a magia, é a chispa." Adorei essa palavra, a "chispa". E me perguntei então, em 2001, a mesma coisa que me pergunto agora, incomodada, a chispa ou a "chutzpah"? De repente, só por causa de um algodão-doce com flores, me animo e acredito.Volto a me encantar com as caras emocionadas dos chefs, juntos, estourando de orgulho da terra e de seus produtos. É nessa hora que penso que talvez não seja uma modinha, me lembro tão bem da nouvelle-cuisine, o entusiasmo de todos, quase todos, a beleza dos pratos e tudo que ficou. Foi um trabalho de grupo, um horizonte que se abriu, uma construção feita por várias pessoas que se submeteram a um longo período de pesquisas.
É o que vejo agora, nessa cozinha que inventa seu próprio nome, "tecno-emocional". Os cozinheiros envolvidos numa estratégia de se comunicar emocionalmente, tecnicamente, artisticamente. Cada um faz uma coisa, mas favorecem uma circularidade entre eles, fala-se mais e mais de equipe, com as individualidades preservadas, mas um único fim a ser alcançado.
A pessoa sozinha não conta mais, eles interagem e aprendem uns com os outros. É uma meditação prazerosa, não são matemáticos, nem sociólogos, nem filósofos, e nem deveriam se meter nessas áreas, deixem que os outros expliquem o que há de ordem, sedução, intuição, criatividade, arte, na procura dessa Espanha, desse turismo, desse gozo.

ninahorta@uol.com.br



Texto Anterior: Tentações
Próximo Texto: Série: No 5º ano, dr. House encara a morte
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.