São Paulo, sábado, 13 de novembro de 2010

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livros

CRÍTICACONTO

Dor, culpa e morte perpassam as histórias de Julio Cortázar

Coletânea inclui conto que inspirou o filme "Blow Up", de Antonioni

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Volta pelo selo Civilização Brasileira a tradução de Eric Nepomuceno para "As Armas Secretas", conjunto de cinco contos publicados originalmente pelo escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984).
Na época, o autor ainda não havia atingido a notoriedade que lhe granjearia seu romance, ou antirromance, "O Jogo da Amarelinha", de 1963. Numa palestra um pouco anterior, feita em Cuba, ele conta que, mesmo na Argentina, chegavam a confundi-lo com outros escritores.
Fazia alguns anos que se radicara em Paris e dizia sentir-se como um fantasma.
Não por acaso, todas as histórias do livro se passam na capital francesa.
E, expatriados ou não, os personagens também aparecem deslocados da realidade. Todos eles, mesmo a criada Francinet, de "Os Bons Serviços", guardam certa "qualidade espectral", uma característica que Cortázar atribuiu ironicamente a si mesmo naquela conferência cubana.
O dado fantasmagórico percorre o primeiro conto do volume, "Cartas de Mamãe", em que a dor e a culpa pela morte de um ente querido ameaçam materializar-se como presença rediviva.
Mas é em "O Perseguidor", quase uma novela por causa de sua extensão, que a figura central personifica a ideia do fantasma ou da morte.
O saxofonista Johnny Carter executa de vez em quando brilhantes improvisações jazzísticas, enquanto afunda numa existência atormentada e miserável.
Johnny ressente-se, entre outras coisas, da biografia que o narrador lhe dedicara, na qual este último teria se esquecido de um detalhe: o próprio biografado não se vê retratado nela.
Os limites da representação e o alcance da arte numa era de contornos alucinados retornam em "As Babas do Diabo", sobre um tradutor e fotógrafo franco-chileno que crê ter presenciado uma cena num certo domingo no parque e, ao ampliar as fotos tiradas no local, percebe que o que "então havia imaginado era muito menos horrível que a realidade".
O conto serviu de inspiração para "Blow Up" (1966), do italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007) (no Brasil, ganhou o horrível título "Depois Daquele Beijo"), um dos mais extraordinários filmes sobre os rumos emaranhados da sociedade.
Se as relações entre o niilismo pós-moderno e a realidade alucinada ficam mais evidentes na película de Antonioni, não há como negar que há algo na "vida entre parênteses, divorciada da frase principal" (na expressão do protagonista de "Cartas de Mamãe" e válida para muitos dos personagens de Cortázar) que denuncia os sinais sutis, mas inequívocos, de que a barbárie vinha se instalando a passos largos no centro da civilização. Ponto para o argentino.


MARCELO PEN é professor de teoria literária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

AS ARMAS SECRETAS

AUTOR Julio Cortázar
TRADUÇÃO Eric Nepomuceno
EDITORA Civilização Brasileira
QUANTO R$ 29 (192 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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