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GASTRONOMIA
Implicâncias 2000
NINA HORTA
Colunista da Folha
Existiria uma psicanálise leve
para a envelhescência? Como hidroginástica, por exemplo? Só um
tapinha.
A síndrome principal é a da rabugice, da implicância. Já comecei 2000 implicando comigo mesma e com todos os amigos, cronistas de comida. Explico. Quando chega o fim do ano, com as
suas festas, nós, sem exceção, reclamamos. Comer fruta seca, peru, nozes, amêndoas nos trópicos,
no calorão... Que horror! Vamos
às frescas saladas, às mangas com
alface, ao chuchu com iogurte.
Cruz-credo.
E no resto do ano o que comemos? Arroz, feijão, polenta, feijoada, batata frita, bife acebolado,
frango assado, hambúrguer, macarronada, bacalhau, moqueca,
farofa, castanha-do-pará, de caju,
amendoim torradinho.
E vamos falar em dieta justamente na virada do 2000? Não seria mais inteligente fazer a dieta o
ano inteiro e comer um leitão pururuca no Natal?
Mas, hoje já é janeiro, férias. Estamos em pleno mar... a Castro
Alves. Do barco se vê a cidade, a
igreja de Santa Rita, a cadeia, a casa de Dom João, tudo em alta definição, com a luz batendo no branco das casas e o mar de chumbo.
Daqui dá para enxergar o sítio, no
morro, na altura da escolinha de
navegação do Amir Klink. É um
verde-claro de pasto. E bem ali estão comendo um grande naco da
montanha para aterrar o mangue,
é o que dizem. Mesmo à distância
é uma ferida ocre, enorme, boca
do diabo ameaçando ruir sobre a
pequena estrada. Reclamações ao
bispo.
O turismo em massa chegou,
deseducadíssimo, com os pés sobre as mesas, gargalhadas que fazem tremer as ilhas, decibéis,
muitos decibéis acima do normal.
O que fazer. Ir andando para mais
longe, mais longe, até despencar
do globo?
Ou se trancar num condomínio
fechado com porteiro e elevador e
ar refrigerado para os dias de calor? Piscina e quadra de tênis,
quadras de golfe, meninas da terra desconsoladas vestidas de babá? Convidando para o almoço e
convidada para jantar? Nem
mooorta. Supremo horror.
E de implicância em implicância vamos rompendo o 2000 com
bons livros, benza Deus. Uma coletânea de prosa de Adélia Prado.
Que inveja da mulher tão cheia de
graça e força. Onde terá aprendido a rezar tão bem, quais padres,
quais teólogos a catequizaram,
quais livros a ajudaram, como
achar o caminho de uma fé aberta
e tolerante? Fé inteligente. Difícil.
E ainda por cima tem a implicância que só minha mãe, no
mundo, tinha. Da caipirice das
pessoas que pedem um gol'd'água... Não aguento. É possível?
Boa demais essa Adélia Prado.
Fiquei guardando um livro para
comer depois. "Letters Between a
Father and a Son", L.B. London, 1999, coletânea de cartas
de V.S. Naipaul para o pai, de
Oxford para Trinidad, Port of
Spain, e de Trinidad para
Oxford.
Quem gosta
do Naipaul precisa ler. São cartas enternecedoras e impressionantes. Eu me apaixoneipor "The House of Mr.
Biswas" (A casa do senhor Biswas), mas me
intrigava um autor tão
obsessivamente detalhista
que não falava jamais em comida.
Pois nas cartas fala e muito.
Saiu de Trinidad aos 17 anos
com uma bolsa de estudos para
Oxford, um farnel de galinha
assada, bananas e laranjas. Coisa de mãe. Comenta numa
carta. "Sabem por que fico
me lembrando da galinha? É porque me fez sentir quanto vocês gostavam de mim; e não podem imaginar como este sentimento é infinitamente triste.
Eu me sinto pequeno frente a esta
responsabilidade tão grande, a
responsabilidade de merecer
amor."
Olhe só o que pode uma galinha
assada de mãe!
E nem só de implicâncias vivem
as velhotas rabugentas...
E-mail: ninahort@uol.com.br
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