São Paulo, Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2000


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GASTRONOMIA
Implicâncias 2000

NINA HORTA
Colunista da Folha


Existiria uma psicanálise leve para a envelhescência? Como hidroginástica, por exemplo? Só um tapinha.
A síndrome principal é a da rabugice, da implicância. Já comecei 2000 implicando comigo mesma e com todos os amigos, cronistas de comida. Explico. Quando chega o fim do ano, com as suas festas, nós, sem exceção, reclamamos. Comer fruta seca, peru, nozes, amêndoas nos trópicos, no calorão... Que horror! Vamos às frescas saladas, às mangas com alface, ao chuchu com iogurte. Cruz-credo.
E no resto do ano o que comemos? Arroz, feijão, polenta, feijoada, batata frita, bife acebolado, frango assado, hambúrguer, macarronada, bacalhau, moqueca, farofa, castanha-do-pará, de caju, amendoim torradinho.
E vamos falar em dieta justamente na virada do 2000? Não seria mais inteligente fazer a dieta o ano inteiro e comer um leitão pururuca no Natal?
Mas, hoje já é janeiro, férias. Estamos em pleno mar... a Castro Alves. Do barco se vê a cidade, a igreja de Santa Rita, a cadeia, a casa de Dom João, tudo em alta definição, com a luz batendo no branco das casas e o mar de chumbo. Daqui dá para enxergar o sítio, no morro, na altura da escolinha de navegação do Amir Klink. É um verde-claro de pasto. E bem ali estão comendo um grande naco da montanha para aterrar o mangue, é o que dizem. Mesmo à distância é uma ferida ocre, enorme, boca do diabo ameaçando ruir sobre a pequena estrada. Reclamações ao bispo.
O turismo em massa chegou, deseducadíssimo, com os pés sobre as mesas, gargalhadas que fazem tremer as ilhas, decibéis, muitos decibéis acima do normal. O que fazer. Ir andando para mais longe, mais longe, até despencar do globo?
Ou se trancar num condomínio fechado com porteiro e elevador e ar refrigerado para os dias de calor? Piscina e quadra de tênis, quadras de golfe, meninas da terra desconsoladas vestidas de babá? Convidando para o almoço e convidada para jantar? Nem mooorta. Supremo horror.
E de implicância em implicância vamos rompendo o 2000 com bons livros, benza Deus. Uma coletânea de prosa de Adélia Prado. Que inveja da mulher tão cheia de graça e força. Onde terá aprendido a rezar tão bem, quais padres, quais teólogos a catequizaram, quais livros a ajudaram, como achar o caminho de uma fé aberta e tolerante? Fé inteligente. Difícil.
E ainda por cima tem a implicância que só minha mãe, no mundo, tinha. Da caipirice das pessoas que pedem um gol'd'água... Não aguento. É possível?
Boa demais essa Adélia Prado.
Fiquei guardando um livro para comer depois. "Letters Between a Father and a Son", L.B. London, 1999, coletânea de cartas de V.S. Naipaul para o pai, de Oxford para Trinidad, Port of Spain, e de Trinidad para Oxford.
Quem gosta do Naipaul precisa ler. São cartas enternecedoras e impressionantes. Eu me apaixoneipor "The House of Mr. Biswas" (A casa do senhor Biswas), mas me intrigava um autor tão obsessivamente detalhista que não falava jamais em comida.
Pois nas cartas fala e muito. Saiu de Trinidad aos 17 anos com uma bolsa de estudos para Oxford, um farnel de galinha assada, bananas e laranjas. Coisa de mãe. Comenta numa carta. "Sabem por que fico me lembrando da galinha? É porque me fez sentir quanto vocês gostavam de mim; e não podem imaginar como este sentimento é infinitamente triste. Eu me sinto pequeno frente a esta responsabilidade tão grande, a responsabilidade de merecer amor."
Olhe só o que pode uma galinha assada de mãe!
E nem só de implicâncias vivem as velhotas rabugentas...

E-mail: ninahort@uol.com.br


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