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CRÍTICA
Versão atual globaliza sem paixão
ALVARO MACHADO
especial para a Folha
Dramas e épicos históricos costumam contar mais do tempo em
que são produzidos que da época
que lhes serve de ambientação,
seja a França medieval de Joana
d'Arc ou o reino asiático do Sião
de 1862 (atual Tailândia) que somos convidados a considerar verossímil em "Anna e o Rei".
Nesta quarta versão cinematográfica da história da viúva Anna
Leonowens, baseada nos seus diários de viagem, visitamos mais
uma vez a história da tutora inglesa que afronta os protocolos de
uma cultura "alienígena", tudo
para plantar sementes de civilização nos herdeiros de um exótico
soberano.
Desse rei, a câmera descreve sobretudo uns clichês de déspota
oriental e certos encantos pessoais, ainda que seu intérprete
não cante e dance como o Yul
Brynner da oscarizada versão de
1956, adaptada do musical da
Broadway ("O Rei e Eu").
Pois bem: de suas origens, "Anna e o Rei" conserva o tom antiquado de literatura moral vitoriana e a melosidade do musical de
sucesso, mas, com sua pretensão
de reconstituição de época, o verdadeiro protagonista passa a ser o
atual capítulo da interminável saga da internacionalização do capitalismo.
A nova versão da amizade colorida de Anna pelo oriental parece
feita sob encomenda para ilustrar
os supostos benefícios do fenômeno da globalização, porém sob
a roupagem vistosa da colonização global anterior que foi o imperialismo britânico, reverenciado com fervor pelos norte-americanos de hoje.
Anna é apresentada como a
chance de o "atrasado" Sião pegar
o bonde da modernidade, embora não se neguem ao público visões dantescas de ganância mercantil inglesa, numa conspiração
fomentada através da vizinha Birmânia.
De pouco adianta Jodie Foster,
"ganhadora do Oscar" (repita-se,
como um título nobiliárquico),
mascar com diligência as falas de
Anna para extrair sotaque inglês.
É a América contemporânea e sua
avassaladora influência material e
cultural o que pulsa sob a capa do
romance platônico entre o bárbaro siamês e a inglesa educada.
Em lugar de Brynner no papel
do rei Mongkut, Hollywood dispõe agora de um toque de autenticidade com o campeão de artes
marciais Chow Yun-Fat, dos filmes de Hong Kong e de John
Woo. Sem a majestade do ícone
careca encarnado por Brynner,
mas com carisma próprio, o ator
chinês radicado nos EUA consegue transmitir algum calor aos
ambientes gelados pela presença
de Foster. Anna, a heroína missionária, é uma interpretação
marmórea que traduz a atual
vontade de auto-santificação da
atriz e rebaixa uma carreira com
muitos pontos de real interesse.
Sem produzir faísca, Jodie e
Chow dançam seu minueto casto
contra um fundo de milhões de
dólares gastos em locações na
Malásia, já que Bancoc negou
hospedagem à equipe do diretor
Andy Tennant.
Tecnicamente, a reconstituição
resultou mais convincente que
nas versões anteriores, rodadas
em interiores, mas, de maneira
geral, essa é uma conquista do cinema a partir da década de 70.
Tanta veracidade cênica choca-se, no entanto, à circunstância de
historiadores, tanto orientais como ocidentais, terem apontado
neste século exageros e invenções
nos diários de Leonowens.
As autoridades tailandesas, incluindo um monarca descendente do Mongkut do século 19, consideraram "Anna" artefato insultante e o proibiram em seu país,
como já haviam feito com "O Rei
e Eu".
Foi pouco. Não é preciso pesquisar livros para perceber a descabelada fantasia que é a participação da professorinha nos quiproquós militares de arremate do
filme. Ousadia suprema, letreiros
em registro pedagógico endossam Leonowens como a campeã
que ajudou a derrubar a escravidão siamesa armada de um simples exemplar da "Cabana do Pai
Tomás", novela da norte-americana Harriet Stowe. Os vencedores escrevem a história, humilhando uma civilização cujas origens remontam à pré-história.
Ao público "livre" fora do território tailandês, restam, para
acompanhar duas horas de vazia
pompa teatral com belos figurinos e cenários, mais vinte minutos de um clímax forçado e desastroso em todos os sentidos. Arrogância e propaganda subliminar
em lugar da assumida inconsequência e escapismo do musical
dos anos 50. Nem a crítica norte-americana conseguiu engolir essa
burrice estratégica.
Avaliação:
Filme: Anna e o Rei (Anna and the King)
Diretor: Andy Tennant
Produção: EUA, 1999
Com: Jodie Foster e Chow Yun-Fat
Onde: a partir de hoje, nos cines Belas
Artes Oscar Niemeyer, Eldorado 6 e
circuito
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