São Paulo, Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2000


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CRÍTICA
Versão atual globaliza sem paixão

ALVARO MACHADO
especial para a Folha

Dramas e épicos históricos costumam contar mais do tempo em que são produzidos que da época que lhes serve de ambientação, seja a França medieval de Joana d'Arc ou o reino asiático do Sião de 1862 (atual Tailândia) que somos convidados a considerar verossímil em "Anna e o Rei".
Nesta quarta versão cinematográfica da história da viúva Anna Leonowens, baseada nos seus diários de viagem, visitamos mais uma vez a história da tutora inglesa que afronta os protocolos de uma cultura "alienígena", tudo para plantar sementes de civilização nos herdeiros de um exótico soberano.
Desse rei, a câmera descreve sobretudo uns clichês de déspota oriental e certos encantos pessoais, ainda que seu intérprete não cante e dance como o Yul Brynner da oscarizada versão de 1956, adaptada do musical da Broadway ("O Rei e Eu").
Pois bem: de suas origens, "Anna e o Rei" conserva o tom antiquado de literatura moral vitoriana e a melosidade do musical de sucesso, mas, com sua pretensão de reconstituição de época, o verdadeiro protagonista passa a ser o atual capítulo da interminável saga da internacionalização do capitalismo.
A nova versão da amizade colorida de Anna pelo oriental parece feita sob encomenda para ilustrar os supostos benefícios do fenômeno da globalização, porém sob a roupagem vistosa da colonização global anterior que foi o imperialismo britânico, reverenciado com fervor pelos norte-americanos de hoje.
Anna é apresentada como a chance de o "atrasado" Sião pegar o bonde da modernidade, embora não se neguem ao público visões dantescas de ganância mercantil inglesa, numa conspiração fomentada através da vizinha Birmânia.
De pouco adianta Jodie Foster, "ganhadora do Oscar" (repita-se, como um título nobiliárquico), mascar com diligência as falas de Anna para extrair sotaque inglês. É a América contemporânea e sua avassaladora influência material e cultural o que pulsa sob a capa do romance platônico entre o bárbaro siamês e a inglesa educada.
Em lugar de Brynner no papel do rei Mongkut, Hollywood dispõe agora de um toque de autenticidade com o campeão de artes marciais Chow Yun-Fat, dos filmes de Hong Kong e de John Woo. Sem a majestade do ícone careca encarnado por Brynner, mas com carisma próprio, o ator chinês radicado nos EUA consegue transmitir algum calor aos ambientes gelados pela presença de Foster. Anna, a heroína missionária, é uma interpretação marmórea que traduz a atual vontade de auto-santificação da atriz e rebaixa uma carreira com muitos pontos de real interesse.
Sem produzir faísca, Jodie e Chow dançam seu minueto casto contra um fundo de milhões de dólares gastos em locações na Malásia, já que Bancoc negou hospedagem à equipe do diretor Andy Tennant.
Tecnicamente, a reconstituição resultou mais convincente que nas versões anteriores, rodadas em interiores, mas, de maneira geral, essa é uma conquista do cinema a partir da década de 70.
Tanta veracidade cênica choca-se, no entanto, à circunstância de historiadores, tanto orientais como ocidentais, terem apontado neste século exageros e invenções nos diários de Leonowens.
As autoridades tailandesas, incluindo um monarca descendente do Mongkut do século 19, consideraram "Anna" artefato insultante e o proibiram em seu país, como já haviam feito com "O Rei e Eu".
Foi pouco. Não é preciso pesquisar livros para perceber a descabelada fantasia que é a participação da professorinha nos quiproquós militares de arremate do filme. Ousadia suprema, letreiros em registro pedagógico endossam Leonowens como a campeã que ajudou a derrubar a escravidão siamesa armada de um simples exemplar da "Cabana do Pai Tomás", novela da norte-americana Harriet Stowe. Os vencedores escrevem a história, humilhando uma civilização cujas origens remontam à pré-história.
Ao público "livre" fora do território tailandês, restam, para acompanhar duas horas de vazia pompa teatral com belos figurinos e cenários, mais vinte minutos de um clímax forçado e desastroso em todos os sentidos. Arrogância e propaganda subliminar em lugar da assumida inconsequência e escapismo do musical dos anos 50. Nem a crítica norte-americana conseguiu engolir essa burrice estratégica.


Avaliação:  


Filme: Anna e o Rei (Anna and the King)
Diretor: Andy Tennant
Produção: EUA, 1999
Com: Jodie Foster e Chow Yun-Fat
Onde: a partir de hoje, nos cines Belas Artes Oscar Niemeyer, Eldorado 6 e circuito


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