|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Do cinema em vias de extinção e dos rodeios
Leio nas folhas que o cinema,
apesar da mídia que o enaltece
como a sétima arte (por que a sétima? nunca entendi direito essa
numeração), está perdendo terreno para os rodeios, um espetáculo
bastante primário, em que um
homem por cima e um animal por
baixo disputam qual dos dois é
melhor.
Paguei meu tributo ao cinema.
Gente de minha geração aceitou a
tal sétima arte. Achava transcendente o expressionismo alemão,
tive acesso a uma cópia arrebentada de "O Gabinete do Dr. Caligari", eram uns rolos em péssimo
estado, nunca acertei a melhor
forma de exibi-los e, para meu espanto, vim mais tarde a saber que
a própria equipe de filmagem não
tinha certeza sobre como exibir as
diferentes partes daquela obra
-que, apesar de tudo, é uma chave para explicar o que haveria depois na Alemanha e no mundo.
Pulando alguns anos, lembro a
excitação das cultas gentes, no Rio
de Janeiro, ali pelos anos 60,
quando na rua Paissandu estreava algum Godard ou Resnais.
Sem falar nas produções marginais, que rendiam polêmicas nas
redações e bares. "Madre Joana
dos Anjos", por exemplo, um filme
polonês sem nada de especial, foi
erguido a pedra angular da cultura do século 20. Um entendido dizia que o filme era mais importante do que toda a obra de Shakespeare.
Em São Paulo, Belo Horizonte,
Bahia, Recife e Porto Alegre, havia grupos equivalentes que consideravam o cinema o ponto de não
retorno do gênio humano.
Saiu bofetão no Bruni-Copacabana por causa de um filme de
Chabrol. Amigos de longa data
brigaram e se insultaram para decidir se Jeanne Moreau valia mais
do que Joana D'Arc ou valia menos do que Anna Karina.
Com pouco mais de cem anos
nas costas, o cinema está perdendo a "pole position" como entretenimento popular. Os esportes, os
megashows musicais ou religiosos, os rodeios (no caso do Brasil,
Argentina, Estados Unidos, Austrália etc.) estão atraindo mais
público. Evidente que esse critério
não é o adequado para se julgar a
importância de nada, sobretudo,
da obra de arte.
Mas o cinema tem, em suas entranhas, um componente letal. É
um produto de laboratório, sujeito aos avanços de um instrumental que, se de um lado mais se torna sofisticado, de outro mais se
torna acessível a um número
maior de autores e menor de consumidores.
Aos poucos, está ocorrendo com
o cinema a síndrome do soneto.
Nos anos 10 e 20, todo mundo fazia soneto. Como não havia espaço suficiente para tamanha produção e já se desconfiava que
aquilo havia passado de moda, os
autores passavam-se, uns aos outros, suas produções mais recentes, senha secreta de um movimento clandestino, "olha, fiz este
soneto ontem à noite, acho que
saiu bom, dá uma olhada e uma
opinião". Nem havia surpresa
quando o outro, recebido o soneto
de ontem, passava o soneto de anteontem com o mesmo pedido,
"dá uma olhada e uma opinião".
Com o desenvolvimento da indústria digital, os mesmos inquietos que antigamente faziam sonetos farão filmes, experimentais é
claro, com cintilantes propostas
que ninguém entenderá e, se entender, não tirará proveito de nada. Tal como nos sonetos de antanho.
Por que o cinema, em tão curto
tempo, pouco mais de um século,
chegou à exaustão que só é menor
se comparada à pretensão original? Não tinha ele a profundidade
necessária para se colocar como
um estuário do gênio humano,
canalizando em suas imagens a
linguagem de um novo tempo e de
uma nova cultura?
Ou não passou de produto datado dos laboratórios, que mal serviu de suporte a um pensamento,
a uma reflexão, limitando-se a ser
ostensiva e, na maioria das vezes,
espalhafatosa ilustração de um
modismo? A resistência do couraçado Potenkin, a ambição do cidadão Kane, a própria nave de
2001 não ficaram para trás, superadas pelos Rambos, que por sua
vez estão sendo superados pelos
rodeios?
Volto ao cinema dos anos 60,
aos empurrões na porta do Paissandu para se ver um novo Goddard, ao estupor provocado pela
"Madre Joana dos Anjos", que
inaugurava uma nova era do gênio humano. Volto também aos
rolos do Dr. Caligari, que guardei
durante uns tempos e nunca acertei a ordem em que deviam ser
vistos.
O filme, assinado pelo Dr. Robert Wiene, mas realizado por
uma numerosa equipe que nunca
chegou a um resultado sobre o
sentido final da obra, não deixa
de ser uma explicação para o breve e (vamos lá) brilhante patrimônio da afinal sétima arte.
Um louco, diretor de um asilo
de loucos, hipnotiza um louco e
ordena que ele cometa crimes. As
vítimas são, mais ou menos, loucas também.
Como não se chega a uma conclusão sobre a ordem dos fatores,
o produto final é um círculo vicioso: se todos são loucos, ninguém é
louco de fato. Na mesa de edição,
cada louco fará seu filme e depois
irá ao rodeio, até que nova loucura entre em circulação. E quanto
mais fora de ordem, mais lúcida
será a loucura.
Texto Anterior: Programação do Festival de Música nas Montanhas Próximo Texto: Música: Se fosse MC, colocaria seios, diz Beck Índice
|