São Paulo, Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
Do cinema em vias de extinção e dos rodeios

Leio nas folhas que o cinema, apesar da mídia que o enaltece como a sétima arte (por que a sétima? nunca entendi direito essa numeração), está perdendo terreno para os rodeios, um espetáculo bastante primário, em que um homem por cima e um animal por baixo disputam qual dos dois é melhor.
Paguei meu tributo ao cinema. Gente de minha geração aceitou a tal sétima arte. Achava transcendente o expressionismo alemão, tive acesso a uma cópia arrebentada de "O Gabinete do Dr. Caligari", eram uns rolos em péssimo estado, nunca acertei a melhor forma de exibi-los e, para meu espanto, vim mais tarde a saber que a própria equipe de filmagem não tinha certeza sobre como exibir as diferentes partes daquela obra -que, apesar de tudo, é uma chave para explicar o que haveria depois na Alemanha e no mundo.
Pulando alguns anos, lembro a excitação das cultas gentes, no Rio de Janeiro, ali pelos anos 60, quando na rua Paissandu estreava algum Godard ou Resnais. Sem falar nas produções marginais, que rendiam polêmicas nas redações e bares. "Madre Joana dos Anjos", por exemplo, um filme polonês sem nada de especial, foi erguido a pedra angular da cultura do século 20. Um entendido dizia que o filme era mais importante do que toda a obra de Shakespeare.
Em São Paulo, Belo Horizonte, Bahia, Recife e Porto Alegre, havia grupos equivalentes que consideravam o cinema o ponto de não retorno do gênio humano.
Saiu bofetão no Bruni-Copacabana por causa de um filme de Chabrol. Amigos de longa data brigaram e se insultaram para decidir se Jeanne Moreau valia mais do que Joana D'Arc ou valia menos do que Anna Karina.
Com pouco mais de cem anos nas costas, o cinema está perdendo a "pole position" como entretenimento popular. Os esportes, os megashows musicais ou religiosos, os rodeios (no caso do Brasil, Argentina, Estados Unidos, Austrália etc.) estão atraindo mais público. Evidente que esse critério não é o adequado para se julgar a importância de nada, sobretudo, da obra de arte.
Mas o cinema tem, em suas entranhas, um componente letal. É um produto de laboratório, sujeito aos avanços de um instrumental que, se de um lado mais se torna sofisticado, de outro mais se torna acessível a um número maior de autores e menor de consumidores.
Aos poucos, está ocorrendo com o cinema a síndrome do soneto. Nos anos 10 e 20, todo mundo fazia soneto. Como não havia espaço suficiente para tamanha produção e já se desconfiava que aquilo havia passado de moda, os autores passavam-se, uns aos outros, suas produções mais recentes, senha secreta de um movimento clandestino, "olha, fiz este soneto ontem à noite, acho que saiu bom, dá uma olhada e uma opinião". Nem havia surpresa quando o outro, recebido o soneto de ontem, passava o soneto de anteontem com o mesmo pedido, "dá uma olhada e uma opinião".
Com o desenvolvimento da indústria digital, os mesmos inquietos que antigamente faziam sonetos farão filmes, experimentais é claro, com cintilantes propostas que ninguém entenderá e, se entender, não tirará proveito de nada. Tal como nos sonetos de antanho.
Por que o cinema, em tão curto tempo, pouco mais de um século, chegou à exaustão que só é menor se comparada à pretensão original? Não tinha ele a profundidade necessária para se colocar como um estuário do gênio humano, canalizando em suas imagens a linguagem de um novo tempo e de uma nova cultura?
Ou não passou de produto datado dos laboratórios, que mal serviu de suporte a um pensamento, a uma reflexão, limitando-se a ser ostensiva e, na maioria das vezes, espalhafatosa ilustração de um modismo? A resistência do couraçado Potenkin, a ambição do cidadão Kane, a própria nave de 2001 não ficaram para trás, superadas pelos Rambos, que por sua vez estão sendo superados pelos rodeios?
Volto ao cinema dos anos 60, aos empurrões na porta do Paissandu para se ver um novo Goddard, ao estupor provocado pela "Madre Joana dos Anjos", que inaugurava uma nova era do gênio humano. Volto também aos rolos do Dr. Caligari, que guardei durante uns tempos e nunca acertei a ordem em que deviam ser vistos.
O filme, assinado pelo Dr. Robert Wiene, mas realizado por uma numerosa equipe que nunca chegou a um resultado sobre o sentido final da obra, não deixa de ser uma explicação para o breve e (vamos lá) brilhante patrimônio da afinal sétima arte.
Um louco, diretor de um asilo de loucos, hipnotiza um louco e ordena que ele cometa crimes. As vítimas são, mais ou menos, loucas também.
Como não se chega a uma conclusão sobre a ordem dos fatores, o produto final é um círculo vicioso: se todos são loucos, ninguém é louco de fato. Na mesa de edição, cada louco fará seu filme e depois irá ao rodeio, até que nova loucura entre em circulação. E quanto mais fora de ordem, mais lúcida será a loucura.


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