São Paulo, terça-feira, 14 de janeiro de 2003

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FERNANDO BONASSI

Meu encontro com Deus

O senhor veja: primeiro eu perdi meu pai, que fugiu de casa. Disse que ia até ali e já voltava e já viu...
Logo em seguida foi a minha mãe. Ela, digamos, perdeu-se sozinha. Dizem que era desbocada, que não prestava e que vivia armando confusão. O senhor sabe como as pessoas gostam de falar pelas costas...
Irmãos, o senhor veja, eu sei que tenho. Três pelo menos eu sei que existem...
Sei disso porque o mais velho deles, o que jurava ser corretor de imóveis, o senhor veja, mostrou recentemente que não era bem disso. Tinha algo à ver com uma lei da física, sobre dois prédios não poderem ocupar o mesmo lugar, no mesmo terreno, ao mesmo tempo... mas com financiamentos diferentes. Enfim, vai puxar uns anos por estelionato e agravantes.
O irmão do meio, que tinha (ou tem, sei lá) o olho meio puxado e um cabelo bem diferente dos outros, mexeu com quem não devia. Coisa de costa quente. Ou mão boba, vai saber? Esse me mandou um postal. Anda lá por Campina Grande, ou Cuiabá, ou Londrina, ou Várzea Paulista... se não me engano.
Inclusive esse meu irmão teve que partir assim, digamos, num instante. Bem rápido mesmo. É. Deixou um pequinês pra criar. Ele é dentuço. O pequinês. Sim. E tem asma. Fica zuncando a noite inteira. Faz muito barulho. Tranco ele no quintal, mas ainda assim fico ouvindo o zunco. Preciso fechar a porta do quarto. O senhor veja, odeio fechar a porta do quarto. Me dá falta de ar.
O irmão mais moço mora comigo, mas sempre deu muito trabalho. Antes porque comia chocolate com mostarda, misturava cerveja com uísque, cheirava cola e vivia caindo da motocicleta. Então arranjou emprego de motoboy. Não durou uma semana. Agora, o senhor veja, a perna dele apita toda vez que a gente vai no banco pegar a pensão.
O senhor deve estar se perguntando: "Por que eu, o irmão, digamos, mais saudável, não pode pegar sozinho a pensão do irmão caçula?"."
Poder posso. Acontece que esse meu irmão cheio de pino, esse que eu arrasto na cadeira de rodas pra cima e pra baixo, ele não confia em mim. Agora só quer saber de filme de sacanagem e arroz doce. Gasta toda a pensão nisso. Como eu estou desempregado, o senhor veja o que tem sido o meu sustento...
Pra piorar, por orientação daquele irmão mais velho, investi as minhas economias num apartamento de três dormitórios de uma construtora sólida. Tudo só pra mim. Meu plano era derrubar as paredes e fazer um salão desse tamanho. Andar pelado de cortina aberta. Comprar uma televisão de um metro e meio. Não, melhor: ia ter uma suíte com banheira e outra sala enorme, só pra miserável da televisão. Eu queria um metro e meio de televisão!
O senhor veja, um apartamento enorme, todas as minhas economias, uma construtora sólida... O prédio foi demorando, demorando, então meu irmão mais moço escutou no rádio que o presidente da empresa tinha se mudado pra Suíça. Ele tinha um ouvido bom pra desgraça alheia como não tinha pra dele próprio!
Casado? Bem... Casar... casar eu não casei exatamente e nem sei se é bom lembrar de certas coisas... O senhor veja, gostei muito daquela... daquela... Adelina. Adelina era o nome. Gostei mesmo dela. Adelina pra mim agora é, digamos, nome de remédio amargo; mas eu não tinha reparado nesse som antes. Quando conheci era tudo o que eu precisava. Era loirinha e tinha o olho verde. Quando sorria afundava umas covas na bochecha. Ela deixava assim, digamos, um certo decote... mas eu nunca via nada demais naquilo. Os seios da Adelina...
Acontece que quando a gente falava um palavrão perto dela, ficava vermelha. As bochechas vermelhinhas. O olho verde e as bochechas vermelhinhas. Dava vontade de rir. Eu ria.
Aluguei um sobrado. Ela veio morar comigo. Era engraçado... Paguei curso de direito pra ela. Era muito engraçado... Aquele olho verde, o senhor vê... Eu era muito engraçado... Pensei que era o olho da pureza, mas digo ao senhor que não. Não era. Deu pra metade dos professores da faculdade. Faculdade dessas grandes. Digamos, universidade mesmo, tipo franchising, com um monte de filiais, publicações próprias e professores fumando, tomando cafezinho e se engraçando com a mulher dos outros nos intervalos. Muitas filiais, publicações, intervalos, professores... acabou com o de direito civil.
Me deixou com uma mão por aqui e a outra pra cobrir lá atrás. Nem casado eu era. Perdi o resto, aquilo que a construtora sólida ainda não tinha levado. O miserável do amante dela cuidou da causa. Depois deu uma aula sobre a "falência do concubinato". Eu pensando que aquele olho verde era o olho da pureza... O tal do professor nem ficou com ela... Aquele olho verde... Outro dia ainda me disseram que ela continua por aí, "nos intervalos"...
Morar mesmo, o senhor veja, eu e esse meu irmão mais moço moramos aqui nesse troço de propriedade dessa minha tia. Quando ela bebe, põe fogo no colchão. Já comprei seis: dois Blu Sky; três SuperAnathom e um Espumex mesmo, que eu já tava de saco cheio. O cara da loja me chama pelo apelido...
Meu apelido não presta. Não vou contar. Tudo tem limite.
Então, o senhor veja, encontrei Deus. Foi ali em cima, perto da padaria. Eu já tinha tomado umas. Acabei pegando gosto, olhando essa minha tia. Sei que eu olhei bem pra cara dele, medi de cima a baixo e falei mesmo: isso é coisa que se faça comigo?!


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