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FERNANDO BONASSI
Meu encontro com Deus
O senhor veja: primeiro eu
perdi meu pai, que fugiu de
casa. Disse que ia até ali e já voltava e já viu...
Logo em seguida foi a minha
mãe. Ela, digamos, perdeu-se sozinha. Dizem que era desbocada,
que não prestava e que vivia armando confusão. O senhor sabe
como as pessoas gostam de falar
pelas costas...
Irmãos, o senhor veja, eu sei que
tenho. Três pelo menos eu sei que
existem...
Sei disso porque o mais velho
deles, o que jurava ser corretor de
imóveis, o senhor veja, mostrou
recentemente que não era bem
disso. Tinha algo à ver com uma
lei da física, sobre dois prédios
não poderem ocupar o mesmo lugar, no mesmo terreno, ao mesmo
tempo... mas com financiamentos
diferentes. Enfim, vai puxar uns
anos por estelionato e agravantes.
O irmão do meio, que tinha (ou
tem, sei lá) o olho meio puxado e
um cabelo bem diferente dos outros, mexeu com quem não devia.
Coisa de costa quente. Ou mão
boba, vai saber? Esse me mandou
um postal. Anda lá por Campina
Grande, ou Cuiabá, ou Londrina,
ou Várzea Paulista... se não me
engano.
Inclusive esse meu irmão teve
que partir assim, digamos, num
instante. Bem rápido mesmo. É.
Deixou um pequinês pra criar.
Ele é dentuço. O pequinês. Sim. E
tem asma. Fica zuncando a noite
inteira. Faz muito barulho. Tranco ele no quintal, mas ainda assim fico ouvindo o zunco. Preciso
fechar a porta do quarto. O senhor veja, odeio fechar a porta do
quarto. Me dá falta de ar.
O irmão mais moço mora comigo, mas sempre deu muito trabalho. Antes porque comia chocolate com mostarda, misturava cerveja com uísque, cheirava cola e
vivia caindo da motocicleta. Então arranjou emprego de motoboy. Não durou uma semana.
Agora, o senhor veja, a perna dele
apita toda vez que a gente vai no
banco pegar a pensão.
O senhor deve estar se perguntando: "Por que eu, o irmão, digamos, mais saudável, não pode pegar sozinho a pensão do irmão
caçula?"."
Poder posso. Acontece que esse
meu irmão cheio de pino, esse que
eu arrasto na cadeira de rodas
pra cima e pra baixo, ele não confia em mim. Agora só quer saber
de filme de sacanagem e arroz doce. Gasta toda a pensão nisso. Como eu estou desempregado, o senhor veja o que tem sido o meu
sustento...
Pra piorar, por orientação daquele irmão mais velho, investi as
minhas economias num apartamento de três dormitórios de uma
construtora sólida. Tudo só pra
mim. Meu plano era derrubar as
paredes e fazer um salão desse tamanho. Andar pelado de cortina
aberta. Comprar uma televisão
de um metro e meio. Não, melhor:
ia ter uma suíte com banheira e
outra sala enorme, só pra miserável da televisão. Eu queria um
metro e meio de televisão!
O senhor veja, um apartamento
enorme, todas as minhas economias, uma construtora sólida... O
prédio foi demorando, demorando, então meu irmão mais moço
escutou no rádio que o presidente
da empresa tinha se mudado pra
Suíça. Ele tinha um ouvido bom
pra desgraça alheia como não tinha pra dele próprio!
Casado? Bem... Casar... casar eu
não casei exatamente e nem sei se
é bom lembrar de certas coisas...
O senhor veja, gostei muito daquela... daquela... Adelina. Adelina era o nome. Gostei mesmo dela. Adelina pra mim agora é, digamos, nome de remédio amargo;
mas eu não tinha reparado nesse
som antes. Quando conheci era
tudo o que eu precisava. Era loirinha e tinha o olho verde. Quando
sorria afundava umas covas na
bochecha. Ela deixava assim, digamos, um certo decote... mas eu
nunca via nada demais naquilo.
Os seios da Adelina...
Acontece que quando a gente
falava um palavrão perto dela, ficava vermelha. As bochechas vermelhinhas. O olho verde e as bochechas vermelhinhas. Dava vontade de rir. Eu ria.
Aluguei um sobrado. Ela veio
morar comigo. Era engraçado...
Paguei curso de direito pra ela.
Era muito engraçado... Aquele
olho verde, o senhor vê... Eu era
muito engraçado... Pensei que era
o olho da pureza, mas digo ao senhor que não. Não era. Deu pra
metade dos professores da faculdade. Faculdade dessas grandes.
Digamos, universidade mesmo,
tipo franchising, com um monte
de filiais, publicações próprias e
professores fumando, tomando
cafezinho e se engraçando com a
mulher dos outros nos intervalos.
Muitas filiais, publicações, intervalos, professores... acabou com o
de direito civil.
Me deixou com uma mão por
aqui e a outra pra cobrir lá atrás.
Nem casado eu era. Perdi o resto,
aquilo que a construtora sólida
ainda não tinha levado. O miserável do amante dela cuidou da
causa. Depois deu uma aula sobre
a "falência do concubinato". Eu
pensando que aquele olho verde
era o olho da pureza... O tal do
professor nem ficou com ela...
Aquele olho verde... Outro dia
ainda me disseram que ela continua por aí, "nos intervalos"...
Morar mesmo, o senhor veja, eu
e esse meu irmão mais moço moramos aqui nesse troço de propriedade dessa minha tia. Quando ela bebe, põe fogo no colchão.
Já comprei seis: dois Blu Sky; três
SuperAnathom e um Espumex
mesmo, que eu já tava de saco
cheio. O cara da loja me chama
pelo apelido...
Meu apelido não presta. Não
vou contar. Tudo tem limite.
Então, o senhor veja, encontrei
Deus. Foi ali em cima, perto da
padaria. Eu já tinha tomado
umas. Acabei pegando gosto,
olhando essa minha tia. Sei que
eu olhei bem pra cara dele, medi
de cima a baixo e falei mesmo: isso é coisa que se faça comigo?!
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