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FERREIRA GULLAR
A Justiça tarda
O advogado pediu-lhe mais paciência; não valeria a pena aceitar qualquer proposta
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ZÉ PAULO trabalhava na sala de
imprensa de um instituto do
governo, quando se deu o golpe militar de 1964. Nascido de uma
família getulista, simpatizava com o
presidente João Goulart e, no sindicato, participava de manifestações
de apoio ao governo, especialmente
depois que a crise se agravou e o fantasma do golpe militar tornara-se
uma ameaça real.
Na noite do dia 31 de março, quando já as tropas do Exército haviam se
rebelado em Minas Gerais, reuniu-se com alguns companheiros no sindicato para ver se era possível colaborar na defesa do presidente da República. Sua esperança desvaneceu-se quando o rádio informou que o
general Kruel, comandante do 2º
Exército, sediado em São Paulo,
aderira ao golpe. Na manhã do dia 1º
de abril estava tudo consumado. Zé
Paulo jurou que não se submeteria
aos militares instalados no poder.
Fez o que pôde. Participou de reuniões, colaborou na organização da
resistência à ditadura, desenvolveu
atividades clandestinas, até que um
dos membros da organização foi
preso e, sob tortura, entregou os
companheiros. A Zé Paulo não sobrou outra alternativa que passar à
clandestinidade e, depois, exilar-se.
Seu exílio durou quase dez anos.
De volta ao Brasil, desempregado,
decidiu recuperar o seu emprego na
sala de imprensa do instituto. Como
havia sido demitido por abandono
de emprego, alegou que, na verdade,
fora obrigado, pela repressão da ditadura, a deixá-lo. Seus argumentos
foram aceitos, foi reintegrado no
emprego, mas não lhe concederam o
pagamento dos salários durante o
tempo em que esteve afastado.
Seu advogado entrou com uma
ação que foi vitoriosa na primeira
instância, mas o governo recorreu. O
julgamento em segunda instância
demorou anos. Perguntou ao advogado se não podia solicitar ao juiz
que desse uma decisão.
- Você está maluco. Se eu fizer isso, aí é que ele não decide e, se decidir, será contra nós.
- Mas faz quatro anos que o processo está com ele.
- E pode ficar mais quatro. Não há
nada a fazer, senão esperar.
Zé Paulo se conformou. Terminou
esquecendo o processo. Finalmente,
aposentou-se no instituto, ganhou
netos, viajou à Europa, operou a
próstata, mudou-se para um sítio
em Nova Friburgo. Um belo dia, recebeu um telefonema de Brasília, de
uma amiga que trabalhava no STJ.
- Você acaba de ganhar a ação contra o instituto!
Emocionado, ligou para o seu
advogado:
- Ganhei mesmo?
- Ganhou. Não cabe mais recurso.
- E quando eu recebo a grana?
- Bem, isso ainda demora... Vão ter
que pedir ao instituto que informe
quanto você ganhava na época, para
calcular quanto deve receber.
Foi feita a solicitação ao instituto
que, um ano depois, não havia mandado as informações. Por sorte, Zé
Paulo, em conversa com uma amiga,
soube que ela era parenta do atual
presidente do instituto e, assim, em
poucas semanas, as informações estavam nas mãos do juiz, que as encaminhou ao técnico para os cálculos.
Feitos os cálculos e entregues ao
juiz, ele demorou dois anos para escrever, no processo, a seguinte frase:
"Encaminhe-se à Advocacia Geral
da União".
A essa altura, Zé Paulo já ganhara
o primeiro bisneto. Como a vista foi
ficando turva, teve que fazer operação de catarata no olho direito e, um
ano depois, no esquerdo. Um belo
dia o advogado lhe telefonou:
- A Advocacia Geral da União rejeitou os cálculos.
- Como assim, não foram feitos
por um técnico?
- Isso não importa.
- Escute, diga à Advocacia Geral da
União que, a esta altura, aceito qualquer cálculo, a quantia que considerarem justa. Não agüento mais!
O advogado pediu-lhe mais paciência. Não valeria a pena aceitar
qualquer proposta, uma vez que,
mesmo assim, a coisa não se resolveria logo. Explicou-lhe que, definida a
quantia exata que deverá receber, a
ordem de pagamento será encaminhada ao Congresso para ser incluída, como precatório, no Orçamento
do ano seguinte. Se chegar depois,
terá que esperar mais dois anos.
- E aí então será pago?
- Deveria ser, mas, de alguns anos
para cá, o governo não paga os precatórios ou paga quando quer.
- Deixa ver se estou entendendo.
Passo 29 anos pelejando na Justiça
e, depois que ganho, o governo não
obedece à decisão judicial, não me
paga e fica por isso mesmo?
- É, a menos que você tenha um
pistolão nas altas rodas de Brasília.
- Para que então existe a Justiça
neste país?
- Será que existe?
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