São Paulo, segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Portugal hoje


Após União Européia, portugueses pararam de se apresentar como parentes pobres

NOSSO homem na cidade do Porto, João Pereira Coutinho, revelou certa vez quanto as brasileiras haviam feito para ressuscitar esteticamente suas primas lusitanas. Estas, confiando na reserva do mercado masculino nacional, teriam, por décadas, deixado de lado o empenho necessário para se manter atraentes. A súbita concorrência que se viram obrigadas a enfrentar diante da desinibição de cariocas esguias e depiladas que, impiedosamente armadas de fios-dentais, irrompiam em pessoa ou na TV, não lhes deixou escolha salvo a adaptação que, como Darwin explica, é a chave da sobrevivência.
Embora esquerdistas e feministas cedam sempre ao cacoete de chamar tais constatações de reacionárias e/ ou machistas, o fato é que gente menos carrancuda veria quão modernizador, revolucionário mesmo, foi o processo, uma vez que a beleza, antes privilégio restrito a poucas, tornou-se acessível a muitas: democratizou-se. Isso encapsula mais de 30 anos de transformações do país.
Nação colocada à margem da Europa menos pela geografia do que por meio século do Estado Novo "fascistizante" de Salazar, Portugal, "orgulhosamente só", persistia num estilo pré-moderno de vida. Quanto aos "capitães" que, em 25 de abril de 1974, derrubaram o antigo (e podre) regime, estes tampouco simpatizavam com a sociedade de consumo e pretendiam apenas transformar a estagnação de direita numa pasmaceira de esquerda. Tanto salazaristas como os responsáveis pela Revolução dos Cravos concordavam em sua ojeriza à Coca-Cola. Ocorre que não há sociedades mais maçantes do que aquelas nas quais não haja Coca-Cola ou McDonald's, pois inclusive o direito de não freqüentar este último só pode ser exercido plenamente, enquanto escolha individual, onde a rede exista.
O "aggiornamento" local foi demorado. Quando estive aqui pela primeira vez, em 1982, o país ainda fazia jus à piada na qual um espanhol pergunta ao português "não é bom para vocês morarem tão perto da Europa?" e ele lhe responde "claro que sim: é só cruzarmos a Espanha e estamos lá". Daquilo que as lojas ofereciam até a maneira como as pessoas se comportavam, a impressão era de se estar num lugar pacato do Terceiro Mundo. Quatorze anos depois, algo melhorara e muito piorara. Sobretudo o estado de conservação das cidades, das casas, ruas e edifícios beirava o melancólico e, por descaso ou má administração, Portugal ficara aquém da Hungria ou da República Tcheca. Em 1998, contudo, Lisboa se convertera numa verdadeira capital européia com calçadões e vitrines atraentes, gente afluente fazendo compras, mulheres elegantes, turistas etc. Hoje, o mesmo vale para o resto do país, em especial para o Porto.
Se Portugal se beneficiou de verbas injetadas pela União Européia, suspeito que a causa de sua modernização embelezadora seja similar àquela que resultou no embelezamento modernizador de suas moças, a saber, a competição. Não mais "sós", os portugueses, ao entrarem para um clube abastado, insistiram em se integrar "orgulhosamente" e, portanto, pararam de se apresentar como parentes pobres. Além do mais, o clima, o litoral e os monumentos históricos asseguram ao país um lugar de destaque entre os destinos turísticos. Por que não apostar nisso? O desenvolvimentismo postulava, como pré-condição de uma independência hipotética, que os países deviam, cada qual, produzir seus próprios queijos e microchips. A globalização, apostando na interdependência e na sinergia, encoraja, por exemplo, Taiwan a se concentrar em telas de cristal líquido e Portugal a se dedicar à hotelaria e ao queijo da Serra.
Ao fim e ao cabo, os brasileiros também somos beneficiários das transformações lusitanas. Excetuando a camada intelectual mais refinada que, já nos anos 50, revoltando-se contra o "establishment" literário personificado pela revista "Presença", adotou a geração de Drummond como seu segundo modernismo (o primeiro havia sido o de Fernando Pessoa e contemporâneos), os portugueses em geral não se interessavam pela cultura brasileira nem, aliás, os brasileiros pela portuguesa da época. Havia, de lado a lado, preconceitos, complexos de inferioridade e superioridade, bem como reservas inúteis de mercado.
Nos dias que correm, porém, autores maduros ou jovens de ambas as margens do mar-oceano são simultaneamente publicados e lidos em São Paulo e Lisboa, algo que não ocorria desde os tempos em que Eça de Queirós e Machado de Assis liam-se um ao outro com mútuo prazer e admiração.

Texto Anterior: Novo "Bone" intensifica ritmo de aventura
Próximo Texto: Celebridade: Ator Wesley Snipes vai a julgamento nos EUA
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.