São Paulo, quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

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COMIDA

NINA HORTA

Julia Child, a cozinha e o amor


Mas o homem, do jeito que você diz, até parece que virou escravo sexual da cozinheira


NA SEMANA passada, fui surpreendida por uma matéria do brilhante colunista da Folha, Marcelo Coelho, que foi assistir ao filme "Julia & Julie" e até gostou, achou simpático. Diz ele: "Por trás dessa utopia culinária, tão limitada e intranscendente, acho que existem outras coisas em jogo. Estamos, na verdade, em plena ideologia pós-feminista e pós-liberal. "Julia & Julie", com um intervalo de cinco décadas, lutam e triunfam bravamente na cozinha. Mas a vitória, o sonho, o Paraíso delas se realiza em outro lugar. Melhores do que qualquer "coq au vin", os maridos de ambas cumprem os ideais de toda mulher: atenciosos, ativos sexualmente, estáveis. Se o velho clichê dizia que "lugar de mulher é na cozinha", o filme de Nora Ephron dá a resposta, pós-feminista, de que isso não está nada errado, desde que lugar de homem seja no leito conjugal".
É, concordo, mas o homem, do jeito que você diz, até parece que virou objeto e escravo sexual da cozinheira. Também não é assim. Ora, Marcelo Coelho, e você ainda duvida que uma pessoa que te ame não seja sempre melhor que um coq au vin? Ou uma dissertação premiada sobre "o dessalgue do bacalhau"?
Bom, vou te contar, sem racionalizações. Julia Child era uma mulher inventiva, confiante, espontânea, com padrões muito definidos do que era a excelência, cheia de bom senso, tudo isso alicerçado na sua educação de cidadã. Inteligente, ligada à família e aos amigos, generosa e autêntica. E se o velho clichê era "lugar de mulher é na cozinha", claro que pode ser o clichê de hoje para muitas mulheres que gostam de cozinhar. E sem culpa, graças a Deus. Mas por que esse problema com a cozinha? Por que estudar gastronomia é uma "utopia tão limitada e intranscedente"? Não acho. As dificuldades a serem enfrentadas, com certeza, são maiores do que em muitas outras profissões. E foram para Julia Child. Os preconceitos também.
Nora Ephron, cozinheira, roteirista, escritora e diretora, boa, por sinal, mostra a blogueira Julie num almoço de amigas, quando ela ainda tinha aquele serviço idiota, completamente alienada, comendo a dieta da moda, e todas as outras mulheres transportadas para outros lugares, nenhuma presente de verdade ao encontro, grudadas no celular, atarrachadas aos seus mundos idealizados, o mundo da carreira, totalmente sem transcendência ou utopia, esse, sim.
Talvez o filme tenha mesmo mostrado as dificuldades de Julia para alcançar seus objetivos como superficiais, por restrições do tempo para contar duas histórias, mas foram tão grandes como a de qualquer urbanista ou filósofo. Não teve briguinhas com editores, e sim adiou a publicação de um livro por oito anos para não ceder à editora que só queria saber de lucros, e teve, sim, todas as grandes corporações de alimentos querendo dobrá-la. Ela só queria saber de educar o americano médio. O sucesso e o dinheiro foram consequências, que ela aproveitou sendo mais útil e mais feliz.
Quem quer uma carreira gloriosa sem amor? Se não houver jeito, sublimemos, ok. Vejam a diferença da vida dela e da de Martha Stewart. Taí, são bons exemplos. Martha acabou com sua vida privada para enriquecer. E Julia Child levou para a profissão o dia a dia, a domesticidade, o bom caráter, a tolerância, a compaixão.
Se não formos possuídos por uma missão aterradora, qualquer amor de verdade vale uma profissão, e se o amor e a profissão vierem juntos, então, Paraíso mesmo. E os paraísos são difíceis de serem alcançados. Deve ter sido por isso, afinal, que Norah Ephron, com vários casamentos destroçados, teve a coragem de mostrar um pouquinho da relação de Julia e Paul. Realmente, o Marcelo Coelho tem razão, um "bon appétit" é o segredo da vida boa, acreditem.

ninahorta@uol.com.br


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