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A hora do pó, das cinzas e do nada
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
No Convento dos Frades Capuchinhos, ali na Via Veneto,
quase chegando à Piazza Barberini, há muitos religiosos sepultados, esperando pelo dia
da ressurreição da carne -um
dos dogmas da Igreja Católica.
Como acontece no Congresso
brasileiro, há de tudo ali, inclusive o alto e o baixo clero. O
mais notável representante dos
cartolas é o próprio fundador
do convento, o cardeal Antonio Barberini, capuchinho de
origem e irmão do papa Urbano 8º.
Havia um ditado em Roma:
o que os bárbaros não fizeram,
fizeram os Barberini. Bem, não
vou perder tempo e espaço falando das desditas de Roma e
do neoliberalismo dos Barberini -que acreditavam no mercado com o mesmo entusiasmo
dos nossos governantes de hoje.
Dentro da igreja, está o túmulo desse Barberini, coberto
por uma lápide de mármore,
na qual ele próprio pediu para
que escrevessem o seu epitáfio.
Nenhuma alusão à sua família, a seu nome e honrarias.
Pode-se ler ainda hoje: ``Hic jacet pulvis, cinis et nihil''. Tradução literal: Aqui jaz pó, cinza e nada.
Desculpando-se o erro de
concordância (devia ser: ``hic
jacent'' e não ``hic jacet''), louve-se não a modéstia, mas o
realismo do cardeal. Bem verdade que seu nome ficou na
história: além da praça, a estação de metrô mais próxima
também é Barberini. Mas dele
mesmo ficou (ou ficaram) pó,
cinza e nada. E é nele que eu
penso nesta quarta-feira de
cinzas quando escrevo o artigo
que sairá na sexta-feira que
também devia ser de cinzas.
Olha que este início de 1997
está sendo uma fogueira a reduzir a cinzas alguns dos talentos mais importantes do
nosso tempo. O obituário dos
jornais, que antigamente se reduzia a uma coluna apertada
lá pelas últimas páginas, de repente virou rubrica nobre, com
direito a fotos colossais e cobertura de primeira classe.
Por falar nessa primeira classe, antigamente havia enterros
de primeira, segunda e terceira
classe. Meu avô Horácio teve
enterro de segunda, seu irmão,
que era deputado federal, teve
enterro de primeira, com direito a coches suntuosos, cavalos
negros e ariscos, acompanhamento de 50 carros.
Nosso vizinho na rua Lins de
Vasconcelos, que era fiscal de
não sei o quê e todas as tardes
ficava sentado numa cadeira
de vime na calçada, de pijama,
esperando o resultado do bicho, esse teve enterro de terceira classe, com um solitário carro de praça que meu pai alugou para que a família dele
pudesse levá-lo àquilo que os
jornais da época chamavam de
última morada.
De qualquer forma, de primeira, segunda ou terceira, um
enterro tinha dignidade e dor.
A família recebia um salvo-conduto dos vizinhos e podia uivar a noite inteira, descabelar-se, nenhum mortal podia ir satisfeito para o outro
mundo se não provocasse desmaios e urros. Apesar disso, todos procuravam portar-se com
dignidade.
Como ia dizendo, estamos
em temporada mortuária e
perdemos nesses últimos dias
gente de talento como Edmundo Moniz, Antonio Callado,
Paulo Francis, Mário Henrique Simonsen. É um pacote
respeitável, mesmo sem a inclusão do Vicente Matheus, do
Joaquinzão, do Chico Science.
Costumo romper relações
com os amigos que morrem.
Mesmo assim, fui ao enterro do
Callado -e já comentei aqui o
festim em que ele se transformou. Estava em Roma quando
morreu o Francis- sua morte
repentina foi uma cacetada em
todos os seus amigos e é possível que a sua despedida tenha
tido maior compostura. Vi as
fotos do enterro de Simonsen, a
magra figura do vice-presidente da República em exercício
espremido pelas tumbas e pelas
pessoas que acompanharam o
ex-ministro à já referida última morada.
Já disse que o Cemitério de
São João Batista, em Botafogo,
não é confiável. Prefiro o do
Caju, onde estão os meus
maiores. Basta dizer que, no
São João Batista, deixaram o
vice-presidente em exercício,
com sua patibular magreza,
entrar e sair do cemitério.
No Caju, onde os coveiros são
mais experientes e conhecem
melhor a vida e a morte, o vice-presidente não sairia assim
sem mais nem menos. No mínimo, ele seria indagado se
não queria ficar logo por ali
mesmo, para queimar etapas.
Volto ao desfalque na inteligência nacional. Foi dose. Volto também ao cardeal Barberini, que fez muitas e más durante a sua vida, mas, apesar
de acreditar, por obrigação
profissional, na ressurreição
da carne, desconfiou que dele
sobrariam pó, cinza e nada.
Não sei por quê, acho que da
recente fornada fúnebre, o
Francis é o que mais se aproxima do cardeal-capuchinho.
Sem ser religioso, ele tinha
atração pela liturgia, pelo patrimônio cultural e artístico da
Igreja Católica. Ignoro se deixou epitáfio -morreu imprevistamente e não deve ter tido
tempo para pensar nisso. Não
faz muito tempo, ele se declarou tecnicamente morto. Acredito que, agora, ele deva estar
tecnicamente vivo.
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