São Paulo, segunda-feira, 14 de fevereiro de 2000


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DANÇA CRÍTICA
"Quilombos Urbanos" apresenta o jogo de cintura brasileiro

INÊS BOGÉA
especial para a Folha

"Quilombos Urbanos", o espetáculo que estreou no ano passado em Belo Horizonte, em circuito alternativo, fez agora sua estréia em teatro, no Sesiminas. É um trabalho exemplar do que o Brasil pode na dança e do que a dança pode no Brasil.
Um ritual a Exu -mensageiro dos deuses- abre a noite. Licença é pedida para entrar na rua com o "rap". Como outros tantos Exus, o povo da cidade toma o palco.
Seus corpos falam: movimentos quebrados ou contínuos vão passando e se transformando de um dançarino a outro, desenhando figuras que só se dissipam no próximo gesto. Numa conversa em que as palavras vêm do corpo, a Cia Será Que?, em parceria com o Grupo Up Dance, coloca em cena questões sociais e manifestações culturais da periferia.
A companhia Será Que? foi criada em Belo Horizonte, em 1993, com o objetivo de pesquisar a cultura popular, principalmente nas manifestações afro-brasileiras. O trio Rui Moreira (bailarino e coreógrafo), Gil Amâncio (músico e ator) e Guda (percussionista) explora a integração de técnicas ancestrais, numa fusão de dança, teatro e música.
Fundado um ano antes, também em Belo Horizonte, o Grupo Up Dance inicialmente só se propunha a praticar "hip hop" nos fins-de-semana. Com o passar do tempo foi tornando-se um difusor da cultura "hip hop" na cidade. Em 1998, a Cia Será Que? os convida a desenvolver uma pesquisa conjunta de movimento e música, que resultou em "Quilombos Urbanos".
"Jogo de cintura" é a palavra-chave do espetáculo: já se mostra na própria união desses dois grupos, e serve de tradução literal para a expressão "hip hop". Movimento surgido nos anos 70, na periferia de Nova York, o "hip hop" se expressa por meio do canto falado, ou "rap" ("rhythm-and-poetry", ritmo e poesia) e do "break" (dança quebrada). Chega ao Brasil e se mistura com costumes regionais como a capoeira, candomblé e o congado. Aqui como lá, é assumidamente uma forma de valorizar a cultura das periferias, retratando sua realidade.
Neste espetáculo de dança, música, poesia e teatro, um ambiente de festa popular de rua é recriado no palco. Andaimes, o tablado do chão e tapumes grafitados servem também de instrumento para a trilha sonora de Gil Amâncio, que parte de temas populares, cantigas de roda e outras canções infantis para dar voz aos sentimentos e protestos.
Frases como "a prova dessa mentira é que da miséria eu não saio", ou "o morro não tem vez, o que ele fez já foi demais", um trecho de canção como "It's a long way", de Caetano Veloso, e versos do poeta mineiro Ricardo Aleixo definem o tom combativo do espetáculo.
Uma simples brincadeira de corda, elevada ao requinte de uma dança mirabolante e virtuosística, surge em cena ao som do "rap": "Um homem bateu em minha porta... Mão no chão! Mão na cabeça!". Dois homens de preto, chapéu na cabeça, batem duas cordas, onde três meninos brincam de driblar e escapar. "Jogo de cintura" vira ao mesmo tempo metáfora e imagem literal para o jogo de cintura dos meninos, se esquivando como podem do que podem.
Um momento lírico do espetáculo: Bete Arenque vem começar a dança ao som de "Ai bota aqui o seu pezinho" e "Eu fui no Tororó", entre outras cantigas. Suavemente, vai desenhando com os pés o caminho de encantamento mútuo dessa turma e convidando todos a se reunirem. A dança se encontra revelando a si mesma como dançar.
Momentos assim não deixam ninguém indiferente -e quem de boa-fé não quer acertar o compasso do país? No ritmo do "hip hop", esses dançarinos trazem à cena nada menos que uma visão: a imagem, transformada em possibilidade pela própria experiência desses grupos, de um Brasil que pode dar certo.


Inês Bogéa é bailarina do Grupo Corpo


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