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DANÇA CRÍTICA
"Quilombos Urbanos" apresenta o jogo de cintura brasileiro
INÊS BOGÉA
especial para a Folha
"Quilombos Urbanos", o espetáculo que estreou no ano passado em Belo Horizonte, em circuito alternativo, fez agora sua estréia em teatro, no Sesiminas. É
um trabalho exemplar do que o
Brasil pode na dança e do que a
dança pode no Brasil.
Um ritual a Exu -mensageiro
dos deuses- abre a noite. Licença é pedida para entrar na rua
com o "rap". Como outros tantos
Exus, o povo da cidade toma o
palco.
Seus corpos falam: movimentos
quebrados ou contínuos vão passando e se transformando de um
dançarino a outro, desenhando
figuras que só se dissipam no próximo gesto. Numa conversa em
que as palavras vêm do corpo, a
Cia Será Que?, em parceria com o
Grupo Up Dance, coloca em cena
questões sociais e manifestações
culturais da periferia.
A companhia Será Que? foi criada em Belo Horizonte, em 1993,
com o objetivo de pesquisar a cultura popular, principalmente nas
manifestações afro-brasileiras. O
trio Rui Moreira (bailarino e coreógrafo), Gil Amâncio (músico e
ator) e Guda (percussionista) explora a integração de técnicas ancestrais, numa fusão de dança,
teatro e música.
Fundado um ano antes, também em Belo Horizonte, o Grupo
Up Dance inicialmente só se propunha a praticar "hip hop" nos
fins-de-semana. Com o passar do
tempo foi tornando-se um difusor da cultura "hip hop" na cidade. Em 1998, a Cia Será Que? os
convida a desenvolver uma pesquisa conjunta de movimento e
música, que resultou em "Quilombos Urbanos".
"Jogo de cintura" é a palavra-chave do espetáculo: já se mostra
na própria união desses dois grupos, e serve de tradução literal para a expressão "hip hop". Movimento surgido nos anos 70, na periferia de Nova York, o "hip hop"
se expressa por meio do canto falado, ou "rap" ("rhythm-and-poetry", ritmo e poesia) e do
"break" (dança quebrada). Chega
ao Brasil e se mistura com costumes regionais como a capoeira,
candomblé e o congado. Aqui como lá, é assumidamente uma forma de valorizar a cultura das periferias, retratando sua realidade.
Neste espetáculo de dança, música, poesia e teatro, um ambiente
de festa popular de rua é recriado
no palco. Andaimes, o tablado do
chão e tapumes grafitados servem
também de instrumento para a
trilha sonora de Gil Amâncio, que
parte de temas populares, cantigas de roda e outras canções infantis para dar voz aos sentimentos e protestos.
Frases como "a prova dessa
mentira é que da miséria eu não
saio", ou "o morro não tem vez, o
que ele fez já foi demais", um trecho de canção como "It's a long
way", de Caetano Veloso, e versos
do poeta mineiro Ricardo Aleixo
definem o tom combativo do espetáculo.
Uma simples brincadeira de
corda, elevada ao requinte de
uma dança mirabolante e virtuosística, surge em cena ao som do
"rap": "Um homem bateu em minha porta... Mão no chão! Mão na
cabeça!". Dois homens de preto,
chapéu na cabeça, batem duas
cordas, onde três meninos brincam de driblar e escapar. "Jogo de
cintura" vira ao mesmo tempo
metáfora e imagem literal para o
jogo de cintura dos meninos, se
esquivando como podem do que
podem.
Um momento lírico do espetáculo: Bete Arenque vem começar
a dança ao som de "Ai bota aqui o
seu pezinho" e "Eu fui no Tororó", entre outras cantigas. Suavemente, vai desenhando com os
pés o caminho de encantamento
mútuo dessa turma e convidando
todos a se reunirem. A dança se
encontra revelando a si mesma
como dançar.
Momentos assim não deixam
ninguém indiferente -e quem
de boa-fé não quer acertar o compasso do país? No ritmo do "hip
hop", esses dançarinos trazem à
cena nada menos que uma visão:
a imagem, transformada em possibilidade pela própria experiência desses grupos, de um Brasil
que pode dar certo.
Inês Bogéa é bailarina do Grupo Corpo
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