São Paulo, segunda-feira, 14 de fevereiro de 2000


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FERNANDO GABEIRA
As nuvens de sombra em torno da ribalta de Brasília

Há dias em que você acorda com a disposição de viver cada segundo, de prestar atenção em tudo, de ouvir, enfim, a máxima oriental que aconselha a viver o aqui e o agora. Mas se, nesses mesmos dias, você visita alguma das 42 cidades do entorno de Brasília, é obrigado a recuar um pouco, a se escorar na velha crença ocidental, atribuída a Goethe, para quem a arte nos garante um sistema de ilusões capazes de nos proteger contra verdades muito cruéis. Enfim, não dá para visitar essa área sem a diáfana capa de sonhos otimistas, senão se cai na maior depressão.
No início da semana fui a um lugar chamado Águas Lindas, para algo que se torna uma rotina por lá: crimes praticados pela polícia ou grupos de extermínio.
A rua principal da cidade é de terra batida, vermelha e, olhando assim no meio da tarde, você não se dá conta de que entrou num lugar especial do planeta. Águas Lindas tinha 5.000 habitantes, há um ano atrás. O número cresceu para 100 mil e a cidade é o lugar que mais cresce no mundo.
Muitos dos problemas de Águas Lindas, que fica a 40 quilômetros da capital, são comuns à periferia de Brasília.
A água, por exemplo, é explorada por um grupo particular; os traficantes de droga controlam seu comércio com a violência habitual e a polícia constitui uma gangue à parte, disputando com os órgãos de trânsito o botim das multas, matando suspeitos e intimidando a população.
Assim como na Baixada Fluminense, ou na periferia de São Paulo, os corpos vão aparecendo e não se encontram testemunhas para denunciar os crimes. Todos têm medo. Sabem que televisão e deputados aparecem e desaparecem, ao sabor dos novos casos. Eles ficam e sofrem as consequências.
Quem vive em São Paulo, Rio ou qualquer outra grande cidade do Brasil deve estranhar esse foco no entorno de Brasília. Todos se sentem cercados por formigueiros humanos, nos morros, periferias e alagados, enfim, já têm problemas demais para se interessar por um pedaço de terra vermelha, com gente sofrendo e pedindo socorro ao governo.
Acontece que a tensão nessa área de quase 100 mil km2 está aumentando muito. Milhares de pessoas vêm a Brasília e não conseguem sobreviver na capital e são jogadas para o entorno. O número de pessoas na área total já superou os 2,5 milhões e potencialmente estamos diante de um foco de violência que pode superar todos os outros. Goiás e Minas, onde estão os municípios do entorno de Brasília, confessam-se impotentes para resolver sozinhos os problemas causados por essa migração.
O interessante é que essa gente não só tem um papel na economia da capital, oferecendo um exército industrial de reserva pronto para trabalhar a qualquer preço, mas também tem um papel na política. Muitos deles são atraídos pela proposta populista que lhes acena com loteamentos gratuitos. E passam a morar no entorno, mantendo seus títulos eleitorais em Brasília, constituindo também um exército eleitoral de reserva, capaz de desequilibrar a correlação de forças no DF.
Essa tardia descoberta do entorno de Brasília se deve, no meu caso, a um crime investigado pela Comissão de Direitos Humanos. É a história de um jovem que foi mutilado pela polícia. Na medida em que se aprofundou a investigação, surgiu um total de 79 corpos que já haviam sido encontrados na área, desde 97, todos com características de execução.
Muitos desses crimes foram cometidos pela Polícia Militar. Mas há uma certa cumplicidade de comerciantes, que pagam para matar pessoas indesejáveis. No fundo, o mesmo mecanismo consagrado na Baixada Fluminense e, depois, na periferia de São Paulo, onde despontaram os famosos justiceiros.
O governo já se deu conta do caos que cerca o centro do poder político no país. Criou uma região administrativa para cuidar desses problemas. Mas é preciso grana para esgoto, água, luz, telefones, enfim: o mínimo para administrar um crescimento brutal como esse de Águas Lindas. E será precisa pressão, um certo foco da opinião pública sobre a área que tem tudo, menos os conflitos sociais, para ser esquecida pelo Brasil.
Águas Lindas me lembrou uma edição especial da revista "Granta", em que escritores descreviam o pior lugar pelo qual passaram no mundo. Mas percebi logo que a gente não se pode levar por impressões numa tarde de chuva e velório. Olhando o rosto daquelas pessoas, sua diversidade, vi a cara do Brasil. A gente quer integrar essas nuvens sombrias que se acumulam no Planalto Central e tomar consciência do grande drama que nossa sociedade criou.
É que dentro de Brasília há uma polícia um pouco mais bem paga e preparada porque tem de operar no centro do poder, com um pouco mais de sutileza. No entorno, para onde são jogados os que vieram construir novas vidas, há a polícia de Goiás, mutilando e executando as pessoas, enquanto grupos bem menos sutis do que as elites de Brasília se entrechocam pelo controle da água, do transporte do espaço urbano.
Saí de Águas Lindas com esperanças de ver um palmo diante do meu nariz, ali onde a janela do meu gabinete daria para descortinar, se o prédio de Niemeyer nos desse um pouco mais de horizonte para a paisagem do cerrado.


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