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FERNANDO GABEIRA
As nuvens de sombra em torno da ribalta de Brasília
Há dias em que você acorda
com a disposição de viver cada segundo, de prestar atenção em tudo, de ouvir, enfim, a máxima
oriental que aconselha a viver o
aqui e o agora. Mas se, nesses mesmos dias, você visita alguma das
42 cidades do entorno de Brasília,
é obrigado a recuar um pouco, a
se escorar na velha crença ocidental, atribuída a Goethe, para
quem a arte nos garante um sistema de ilusões capazes de nos proteger contra verdades muito
cruéis. Enfim, não dá para visitar
essa área sem a diáfana capa de
sonhos otimistas, senão se cai na
maior depressão.
No início da semana fui a um
lugar chamado Águas Lindas, para algo que se torna uma rotina
por lá: crimes praticados pela polícia ou grupos de extermínio.
A rua principal da cidade é de
terra batida, vermelha e, olhando
assim no meio da tarde, você não
se dá conta de que entrou num lugar especial do planeta. Águas
Lindas tinha 5.000 habitantes, há
um ano atrás. O número cresceu
para 100 mil e a cidade é o lugar
que mais cresce no mundo.
Muitos dos problemas de Águas
Lindas, que fica a 40 quilômetros
da capital, são comuns à periferia
de Brasília.
A água, por exemplo, é explorada por um grupo particular; os
traficantes de droga controlam
seu comércio com a violência habitual e a polícia constitui uma
gangue à parte, disputando com
os órgãos de trânsito o botim das
multas, matando suspeitos e intimidando a população.
Assim como na Baixada Fluminense, ou na periferia de São Paulo, os corpos vão aparecendo e não
se encontram testemunhas para
denunciar os crimes. Todos têm
medo. Sabem que televisão e deputados aparecem e desaparecem, ao sabor dos novos casos.
Eles ficam e sofrem as consequências.
Quem vive em São Paulo, Rio
ou qualquer outra grande cidade
do Brasil deve estranhar esse foco
no entorno de Brasília. Todos se
sentem cercados por formigueiros
humanos, nos morros, periferias e
alagados, enfim, já têm problemas demais para se interessar por
um pedaço de terra vermelha,
com gente sofrendo e pedindo socorro ao governo.
Acontece que a tensão nessa
área de quase 100 mil km2 está aumentando muito. Milhares de
pessoas vêm a Brasília e não conseguem sobreviver na capital e são
jogadas para o entorno. O número de pessoas na área total já superou os 2,5 milhões e potencialmente estamos diante de um foco
de violência que pode superar todos os outros. Goiás e Minas, onde
estão os municípios do entorno de
Brasília, confessam-se impotentes
para resolver sozinhos os problemas causados por essa migração.
O interessante é que essa gente
não só tem um papel na economia
da capital, oferecendo um exército industrial de reserva pronto para trabalhar a qualquer preço,
mas também tem um papel na
política. Muitos deles são atraídos
pela proposta populista que lhes
acena com loteamentos gratuitos.
E passam a morar no entorno,
mantendo seus títulos eleitorais
em Brasília, constituindo também
um exército eleitoral de reserva,
capaz de desequilibrar a correlação de forças no DF.
Essa tardia descoberta do entorno de Brasília se deve, no meu caso, a um crime investigado pela
Comissão de Direitos Humanos. É
a história de um jovem que foi
mutilado pela polícia. Na medida
em que se aprofundou a investigação, surgiu um total de 79 corpos que já haviam sido encontrados na área, desde 97, todos com
características de execução.
Muitos desses crimes foram cometidos pela Polícia Militar. Mas
há uma certa cumplicidade de comerciantes, que pagam para matar pessoas indesejáveis. No fundo, o mesmo mecanismo consagrado na Baixada Fluminense e,
depois, na periferia de São Paulo,
onde despontaram os famosos
justiceiros.
O governo já se deu conta do
caos que cerca o centro do poder
político no país. Criou uma região
administrativa para cuidar desses
problemas. Mas é preciso grana
para esgoto, água, luz, telefones,
enfim: o mínimo para administrar um crescimento brutal como
esse de Águas Lindas. E será precisa pressão, um certo foco da opinião pública sobre a área que tem
tudo, menos os conflitos sociais,
para ser esquecida pelo Brasil.
Águas Lindas me lembrou uma
edição especial da revista "Granta", em que escritores descreviam
o pior lugar pelo qual passaram
no mundo. Mas percebi logo que a
gente não se pode levar por impressões numa tarde de chuva e
velório. Olhando o rosto daquelas
pessoas, sua diversidade, vi a cara
do Brasil. A gente quer integrar
essas nuvens sombrias que se acumulam no Planalto Central e tomar consciência do grande drama que nossa sociedade criou.
É que dentro de Brasília há uma
polícia um pouco mais bem paga
e preparada porque tem de operar
no centro do poder, com um pouco mais de sutileza. No entorno,
para onde são jogados os que vieram construir novas vidas, há a
polícia de Goiás, mutilando e executando as pessoas, enquanto
grupos bem menos sutis do que as
elites de Brasília se entrechocam
pelo controle da água, do transporte do espaço urbano.
Saí de Águas Lindas com esperanças de ver um palmo diante do
meu nariz, ali onde a janela do
meu gabinete daria para descortinar, se o prédio de Niemeyer nos
desse um pouco mais de horizonte
para a paisagem do cerrado.
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