São Paulo, quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Gore Vidal aos 80

"Point to Point Navigation" é, sobretudo, um livro pessoal sobre a morte: dos que foram próximos, do exílio e do autor

O ESCRITOR português António Lobo Antunes costumava afirmar, com inusitado humor, que a literatura foi uma segunda opção. A primeira seria dançar como Fred Astaire. A frase é boa, a ambição também. Mas, se me permitem, talvez seja possível um ajuste. Quem não sabe dançar como Fred Astaire pelo menos tenta escrever como Fred Astaire dançava. Não é fácil, meu Deus, não é fácil: qualquer matuto é capaz de alinhavar frases "humanistas" e "profundas", como se a salvação do mundo repousasse na gramática.
Outros preferem transpirar em privado e brilhar em público com a leveza do sapateado. Quando um prosador escreve como Astaire dançava, é difícil não ver como as frases dissolvem-se no ar. Anéis de fumo que não deixam rastro, mas embriagam para lá do tolerável.
Gore Vidal chegou aos 80 e continua a dançar. Não falo de política, porque Vidal, em política, acerta pouco nos passos. Os Estados Unidos da "Amnésia" atraiçoaram, sobretudo a partir de Truman, a vocação republicana? Curiosamente, os múltiplos isolacionistas de direita dizem o mesmo. E acusam Washington de ser porta giratória por onde o império põe e dispõe da guerra perpétua para a paz perpétua.
O Vidal que dança está, como sempre esteve, nos ensaios. "United States" (1992) transforma Vidal no principal cultor do gênero, sobretudo num século por onde passaram candidatos óbvios como Edmund Wilson e Isaiah Berlin. "Palimpsest" (1995), o primeiro volume de memórias, é um exemplo de elegância estilística, no qual o autor vai revisitando os primeiros 39 anos de vida com o distanciamento irônico que só o passado merece. Escrevo "revisitar" e sinto que errei a nota. Vidal não revisita nada, porque é o passado que o revisita: rostos ou palavras que se introduzem nas pausas do dia. Como um palimpsesto, sim: uma escrita sobre escrita que vira uma rememoração narcótica.
O mesmo acontece, agora, com "Point to Point Navigation", as memórias finais e, suspeita-se, o livro final do autor. Verdade que "Point to Point Navigation" não tem a feliz intensidade das primeiras memórias. A música abrandou, Vidal também. E os capítulos são breves porque breves devem ser as despedidas.
Mas "Point to Point Navigation" é, sobretudo, um livro pessoal sobre a morte. A morte dos que nos foram próximos, como Fellini, Tennessee Williams, Greta Garbo e até Johnny Carson, o apresentador de TV que regressa do outro lado para uma entrevista imaginária a Vidal. A morte de Howard Auster, companheiro do autor no exílio italiano, e que se despede nas páginas mais belas e brutais de todo o livro. A morte do próprio exílio e o regresso à casa, se "casa" é a palavra certa depois de Ravello. E a morte física do autor, que ele espera com a resignação que Montaigne aconselhava aos gentios.
Disse Montaigne? Disse bem. Não apenas porque o ensaísta francês, que Vidal abundantemente cita, é o precursor espiritual destes exercícios solitários. Mas porque Montaigne sabia que só há uma coisa pior que caminhar para o fim. É fazer de conta que ainda estamos no início.


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