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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Gore Vidal aos 80
"Point to Point Navigation" é, sobretudo, um livro pessoal sobre a morte: dos que foram próximos, do exílio e do autor
O ESCRITOR português António
Lobo Antunes costumava
afirmar, com inusitado humor, que a literatura foi uma segunda opção. A primeira seria dançar
como Fred Astaire. A frase é boa, a
ambição também. Mas, se me permitem, talvez seja possível um ajuste. Quem não sabe dançar como
Fred Astaire pelo menos tenta escrever como Fred Astaire dançava.
Não é fácil, meu Deus, não é fácil:
qualquer matuto é capaz de alinhavar frases "humanistas" e "profundas", como se a salvação do mundo
repousasse na gramática.
Outros preferem transpirar em
privado e brilhar em público com a
leveza do sapateado. Quando um
prosador escreve como Astaire dançava, é difícil não ver como as frases
dissolvem-se no ar. Anéis de fumo
que não deixam rastro, mas embriagam para lá do tolerável.
Gore Vidal chegou aos 80 e continua a dançar. Não falo de política,
porque Vidal, em política, acerta
pouco nos passos. Os Estados Unidos da "Amnésia" atraiçoaram, sobretudo a partir de Truman, a vocação republicana? Curiosamente, os
múltiplos isolacionistas de direita
dizem o mesmo. E acusam Washington de ser porta giratória por
onde o império põe e dispõe da guerra perpétua para a paz perpétua.
O Vidal que dança está, como sempre esteve, nos ensaios. "United States" (1992) transforma Vidal no
principal cultor do gênero, sobretudo num século por onde passaram
candidatos óbvios como Edmund
Wilson e Isaiah Berlin. "Palimpsest"
(1995), o primeiro volume de memórias, é um exemplo de elegância
estilística, no qual o autor vai revisitando os primeiros 39 anos de vida
com o distanciamento irônico que
só o passado merece. Escrevo "revisitar" e sinto que errei a nota. Vidal
não revisita nada, porque é o passado que o revisita: rostos ou palavras
que se introduzem nas pausas do
dia. Como um palimpsesto, sim:
uma escrita sobre escrita que vira
uma rememoração narcótica.
O mesmo acontece, agora, com
"Point to Point Navigation", as memórias finais e, suspeita-se, o livro
final do autor. Verdade que "Point to
Point Navigation" não tem a feliz intensidade das primeiras memórias.
A música abrandou, Vidal também.
E os capítulos são breves porque
breves devem ser as despedidas.
Mas "Point to Point Navigation" é,
sobretudo, um livro pessoal sobre a
morte. A morte dos que nos foram
próximos, como Fellini, Tennessee
Williams, Greta Garbo e até Johnny
Carson, o apresentador de TV que
regressa do outro lado para uma entrevista imaginária a Vidal. A morte
de Howard Auster, companheiro do
autor no exílio italiano, e que se despede nas páginas mais belas e brutais de todo o livro. A morte do próprio exílio e o regresso à casa, se "casa" é a palavra certa depois de Ravello. E a morte física do autor, que ele
espera com a resignação que Montaigne aconselhava aos gentios.
Disse Montaigne? Disse bem. Não
apenas porque o ensaísta francês,
que Vidal abundantemente cita, é o
precursor espiritual destes exercícios solitários. Mas porque Montaigne sabia que só há uma coisa pior
que caminhar para o fim. É fazer de
conta que ainda estamos no início.
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