São Paulo, quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

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MARCELO COELHO

Não há mais ingleses como antes

Quase documentário, filme "A Rainha" escapa de ser um conto de fadas hiper-realista

ESTAMOS NO verão de 1997, e a Rainha Elizabeth 2ª está posando para um retrato. É dia de eleições: Tony Blair sairá consagrado das urnas, dando fim a um longo período de domínio conservador na política inglesa.
A rainha faz uma confidência: gostaria de poder votar, como qualquer pessoa. Inveja, nos eleitores, "o prazer de ser parcial".
O público brasileiro de "A Rainha", divertido filme de Stephen Frears que estreou na sexta-feira, não terá o mesmo prazer da "parcialidade" que essa produção deve assegurar ao público britânico.
Não temos afeição pela família real, e a figura de Tony Blair significa, para nós, pouco: apenas um sorridente, trêfego e algo ordinário coadjuvante de Bush na invasão do Iraque.
Quanto a Lady Di, a terceira ponta do triângulo que dá base ao filme, certamente o mundo inteiro ficou chocado com sua morte, naquele verão de 97, mas seria difícil ir tão longe quanto a população britânica na onda de comoção quase religiosa que se seguiu à tragédia de Paris.
O filme mostra, com imensa simpatia, as reações das pessoas das ruas. A música de fundo e as tomadas panorâmicas do imenso tapete de flores em frente do Palácio de Buckingham não deixam dúvida: Stephen Frears não está sendo britanicamente "imparcial" diante daquelas demonstrações de sentimentalismo popular.
Enquanto isso, a família real passava férias na Escócia, recusando-se a fazer qualquer manifestação pública diante da tragédia. Caberá a Tony Blair, recém-empossado como primeiro-ministro, convencer a rainha Elizabeth a sair de seu frio isolamento.
Posta nesses termos, a tese do filme parece simplória. Os membros da monarquia britânica sofrem de idiotia emocional; deformados por uma educação que privilegia o autocontrole, são incapazes de entender as emoções autênticas do povo.
A formalidade no castelo escocês de Balmoral contrasta com a vida caseira e afetuosa do casal Blair. O primeiro-ministro lava a louça, sua mulher cuida da cozinha. Blair se intimida como um garoto de escola no seu primeiro encontro com a rainha. Ele é "gente como a gente", podendo entender a comoção da massa.
"A Rainha" teria assim algo de "sitcom" americana. Não só porque seus diálogos são inteligentes e engraçados, mas também porque celebra, com direito a "happy end", as virtudes de uma civilização democrática, feita de pessoas comuns e emocionalmente saudáveis, sobre a opressiva tradição vitoriana.
É a própria rainha Elizabeth, responsável pelas melhores frases do filme, quem tira a moral da história: deve conciliar-se com um mundo novo, no qual esconder as próprias emoções deixou de ser virtude. Mas o interessante de "A Rainha" é que permite interpretações que se afastam, acho, da abordagem populista.
Afinal, as coisas se encaixariam melhor, da perspectiva de Frears, se a família real estivesse de fato triste com a morte de Lady Di. O próprio filme indica que não era isso o que acontecia. Todos, com exceção do atônito príncipe Charles, tinham ódio e desprezo por Diana. Se era assim, ninguém estava ocultando britanicamente os próprios sentimentos. O silêncio dos Windsor surgia da raiva e do ressentimento, não da compostura e do tradicionalismo.
Toda a comoção popular com a tragédia não deixa, por sua vez, de parecer muito menos uma expressão de democracia do que um resultado da manipulação midiática em torno das "celebridades". E Tony Blair, dessa perspectiva, é menos um hábil intérprete dos sentimentos de seu povo do que um viscoso oportunista.
Parece também implausível que a rainha e seus familiares desconheçam, a essa altura dos acontecimentos, o seu próprio papel de "celebridades" na mídia. Se, há quarenta anos, os Beatles foram recebidos com honra pela rainha, não convence a idéia de que só com a morte de Diana "caiu a ficha" da massificação na família Windsor.
O tom de quase documentário de "A Rainha" salva-o, entretanto, de ser uma espécie de conto de fadas hiper-realista, com Tony Blair no papel de Pequeno Polegar. Tratando de uma crise semelhante na Inglaterra do século 19, "Mrs. Brown", filme de John Madden com Judy Dench no papel de Rainha Vitória, e Antony Sher no do primeiro-ministro Disraeli, tem muito mais tensão e interesse do ponto de vista político. Mas não se fazem mais ingleses (nem política) como antigamente.


coelhofsp@uol.com.br

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