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MARCELO COELHO
Não há mais ingleses como antes
Quase documentário, filme "A Rainha" escapa de ser um conto de fadas hiper-realista
ESTAMOS NO verão de 1997, e a
Rainha Elizabeth 2ª está posando para um retrato. É dia
de eleições: Tony Blair sairá consagrado das urnas, dando fim a um
longo período de domínio conservador na política inglesa.
A rainha faz uma confidência: gostaria de poder votar, como qualquer
pessoa. Inveja, nos eleitores, "o prazer de ser parcial".
O público brasileiro de "A Rainha", divertido filme de Stephen
Frears que estreou na sexta-feira,
não terá o mesmo prazer da "parcialidade" que essa produção deve assegurar ao público britânico.
Não temos afeição pela família
real, e a figura de Tony Blair significa, para nós, pouco: apenas um sorridente, trêfego e algo ordinário
coadjuvante de Bush na invasão do
Iraque.
Quanto a Lady Di, a terceira ponta
do triângulo que dá base ao filme,
certamente o mundo inteiro ficou
chocado com sua morte, naquele verão de 97, mas seria difícil ir tão longe quanto a população britânica na
onda de comoção quase religiosa
que se seguiu à tragédia de Paris.
O filme mostra, com imensa simpatia, as reações das pessoas das
ruas. A música de fundo e as tomadas panorâmicas do imenso tapete
de flores em frente do Palácio de
Buckingham não deixam dúvida:
Stephen Frears não está sendo britanicamente "imparcial" diante daquelas demonstrações de sentimentalismo popular.
Enquanto isso, a família real passava férias na Escócia, recusando-se
a fazer qualquer manifestação pública diante da tragédia. Caberá a
Tony Blair, recém-empossado como
primeiro-ministro, convencer a rainha Elizabeth a sair de seu frio isolamento.
Posta nesses termos, a tese do filme parece simplória. Os membros
da monarquia britânica sofrem de
idiotia emocional; deformados por
uma educação que privilegia o autocontrole, são incapazes de entender
as emoções autênticas do povo.
A formalidade no castelo escocês
de Balmoral contrasta com a vida
caseira e afetuosa do casal Blair. O
primeiro-ministro lava a louça, sua
mulher cuida da cozinha. Blair se intimida como um garoto de escola no
seu primeiro encontro com a rainha.
Ele é "gente como a gente", podendo
entender a comoção da massa.
"A Rainha" teria assim algo de
"sitcom" americana. Não só porque
seus diálogos são inteligentes e engraçados, mas também porque celebra, com direito a "happy end", as
virtudes de uma civilização democrática, feita de pessoas comuns e
emocionalmente saudáveis, sobre a
opressiva tradição vitoriana.
É a própria rainha Elizabeth, responsável pelas melhores frases do
filme, quem tira a moral da história:
deve conciliar-se com um mundo
novo, no qual esconder as próprias
emoções deixou de ser virtude. Mas
o interessante de "A Rainha" é que
permite interpretações que se afastam, acho, da abordagem populista.
Afinal, as coisas se encaixariam
melhor, da perspectiva de Frears, se
a família real estivesse de fato triste
com a morte de Lady Di. O próprio
filme indica que não era isso o que
acontecia. Todos, com exceção do
atônito príncipe Charles, tinham
ódio e desprezo por Diana. Se era assim, ninguém estava ocultando britanicamente os próprios sentimentos. O silêncio dos Windsor surgia da
raiva e do ressentimento, não da
compostura e do tradicionalismo.
Toda a comoção popular com a
tragédia não deixa, por sua vez, de
parecer muito menos uma expressão de democracia do que um resultado da manipulação midiática em
torno das "celebridades". E Tony
Blair, dessa perspectiva, é menos
um hábil intérprete dos sentimentos de seu povo do que um viscoso
oportunista.
Parece também implausível que a
rainha e seus familiares desconheçam, a essa altura dos acontecimentos, o seu próprio papel de "celebridades" na mídia. Se, há quarenta
anos, os Beatles foram recebidos
com honra pela rainha, não convence a idéia de que só com a morte de
Diana "caiu a ficha" da massificação
na família Windsor.
O tom de quase documentário de
"A Rainha" salva-o, entretanto, de
ser uma espécie de conto de fadas
hiper-realista, com Tony Blair no
papel de Pequeno Polegar.
Tratando de uma crise semelhante na Inglaterra do século 19, "Mrs.
Brown", filme de John Madden com
Judy Dench no papel de Rainha Vitória, e Antony Sher no do primeiro-ministro Disraeli, tem muito mais
tensão e interesse do ponto de vista
político. Mas não se fazem mais ingleses (nem política) como antigamente.
coelhofsp@uol.com.br
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