|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"A Cidade Ilhada"
Contos partem da dinâmica local para reinventar a experiência contemporânea
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Primeiro livro de contos
de Milton Hatoum, "A
Cidade Ilhada" reúne
textos inéditos e relatos publicados em periódicos do Brasil e
do exterior. O título da antologia e a ambientação de quase
todos os contos remetem a Manaus, mas a paisagem aquática
da capital amazonense é, a
exemplo do que ocorre em seus
romances, um espaço ficcional
no qual a representação naturalista se desdobra em espaço
metafórico de tensões individuais, históricas e literárias.
Se em "Dois Irmãos" o ódio
fratricida dá rosto ao confronto
brasileiro entre relações arcaicas e formas predatórias de
modernização, a reelaboração
da tópica literária dos gêmeos
dessemelhantes (em especial a
partir de "Esaú e Jacó", de Machado de Assis) se dá por uma
linguagem que faz tais conteúdos parecerem indissociáveis
de sua hipnotizante lapidação.
Sem a unidade que possuem
nos romances de Hatoum, mas
com os mesmos predicados estilísticos, esses elementos reaparecem disseminados em "A
Cidade Ilhada". De forma mais
visível, na breve recorrência de
personagens como a matriarca
Emilie, de "Relato de um Certo
Oriente", em "A Natureza Ri da
Cultura", e o tio Ranulfo, de
"Cinzas do Norte", em "Varandas da Eva" e "Dois Tempos".
Em contos como "O Adeus
do Comandante" (um barqueiro que transporta o caixão no
qual sepultará o ultraje de um
adultério) e "Varandas da Eva"
(iniciação sexual num bordel
que expõe assimetrias sociais),
o registro linguístico é o da "cor
local": o foco está na opulência
natural e no "ethos" manaura.
Os demais, ao contrário,
transformam a dinâmica portuária de Manaus numa forma
de reinvenção da experiência
contemporânea. O tema do duplo, presente nas várias vozes
dos romances do autor, imanta
a estrutura de contos que se
passam em situações emblemáticas da cena transnacional
e partem de uma linha narrativa a outra, num trânsito de
olhares estrangeiros entre si.
Em "Um Oriental na Vastidão", há o ritual funerário de
um japonês que visitara a Amazônia sob o signo de ideogramas cuja tradução é "no lugar
desconhecido habita o desejo".
Em "Manaus, Bombaim, Palo
Alto", as impressões trocadas
entre um escritor brasileiro e
um oficial indiano ("Para mim,
a Índia é quase uma cartografia
imaginária", diz o primeiro; "A
Amazônia é o mapa de um labirinto infinito", responde o segundo) se revelam um engodo
na apropriação do outro pelo
comércio globalizado, que atinge até os bens simbólicos.
No melhor conto do livro,
"Encontros na Península" (lido
por Hatoum na abertura de um
congresso sobre Machado), um
brasileiro em Barcelona ensina
português a uma espanhola que
deseja provocar o amante lusitano, provando a superioridade
do autor de "Dom Casmurro"
sobre Eça de Queiroz.
Pequena obra-prima que dá
contornos metalinguísticos ao
tema machadiano do adultério,
o conto também pode ser lido
como ironia em relação às ilusões multiculturalistas -reiterando a frase pinçada de uma
outra passagem do livro: "Entendi que a língua, e não a nacionalidade, nos define".
A CIDADE ILHADA
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (128 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Livros: "Fiquei deslumbrado, hoje sou cético", diz autor Próximo Texto: Livros/Vitrine Índice
|