São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2009

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Crítica/"A Cidade Ilhada"

Contos partem da dinâmica local para reinventar a experiência contemporânea

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Primeiro livro de contos de Milton Hatoum, "A Cidade Ilhada" reúne textos inéditos e relatos publicados em periódicos do Brasil e do exterior. O título da antologia e a ambientação de quase todos os contos remetem a Manaus, mas a paisagem aquática da capital amazonense é, a exemplo do que ocorre em seus romances, um espaço ficcional no qual a representação naturalista se desdobra em espaço metafórico de tensões individuais, históricas e literárias.
Se em "Dois Irmãos" o ódio fratricida dá rosto ao confronto brasileiro entre relações arcaicas e formas predatórias de modernização, a reelaboração da tópica literária dos gêmeos dessemelhantes (em especial a partir de "Esaú e Jacó", de Machado de Assis) se dá por uma linguagem que faz tais conteúdos parecerem indissociáveis de sua hipnotizante lapidação.
Sem a unidade que possuem nos romances de Hatoum, mas com os mesmos predicados estilísticos, esses elementos reaparecem disseminados em "A Cidade Ilhada". De forma mais visível, na breve recorrência de personagens como a matriarca Emilie, de "Relato de um Certo Oriente", em "A Natureza Ri da Cultura", e o tio Ranulfo, de "Cinzas do Norte", em "Varandas da Eva" e "Dois Tempos".
Em contos como "O Adeus do Comandante" (um barqueiro que transporta o caixão no qual sepultará o ultraje de um adultério) e "Varandas da Eva" (iniciação sexual num bordel que expõe assimetrias sociais), o registro linguístico é o da "cor local": o foco está na opulência natural e no "ethos" manaura.
Os demais, ao contrário, transformam a dinâmica portuária de Manaus numa forma de reinvenção da experiência contemporânea. O tema do duplo, presente nas várias vozes dos romances do autor, imanta a estrutura de contos que se passam em situações emblemáticas da cena transnacional e partem de uma linha narrativa a outra, num trânsito de olhares estrangeiros entre si. Em "Um Oriental na Vastidão", há o ritual funerário de um japonês que visitara a Amazônia sob o signo de ideogramas cuja tradução é "no lugar desconhecido habita o desejo".
Em "Manaus, Bombaim, Palo Alto", as impressões trocadas entre um escritor brasileiro e um oficial indiano ("Para mim, a Índia é quase uma cartografia imaginária", diz o primeiro; "A Amazônia é o mapa de um labirinto infinito", responde o segundo) se revelam um engodo na apropriação do outro pelo comércio globalizado, que atinge até os bens simbólicos.
No melhor conto do livro, "Encontros na Península" (lido por Hatoum na abertura de um congresso sobre Machado), um brasileiro em Barcelona ensina português a uma espanhola que deseja provocar o amante lusitano, provando a superioridade do autor de "Dom Casmurro" sobre Eça de Queiroz.
Pequena obra-prima que dá contornos metalinguísticos ao tema machadiano do adultério, o conto também pode ser lido como ironia em relação às ilusões multiculturalistas -reiterando a frase pinçada de uma outra passagem do livro: "Entendi que a língua, e não a nacionalidade, nos define".


A CIDADE ILHADA

Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (128 págs.)
Avaliação: ótimo



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