São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

O sertão e o mundo


"Galiléia", de Ronaldo Correia de Brito, encena a versão mais atual do conflito antigo entre cidade e campo


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

COM A mesma força com que "Árido Movie" (2004), filme de Lírio Oliveira, reinventa, aos olhos urbanos dos que regressam, um sertão que o cinema novo, de Glauber a Nelson Pereira dos Santos, retratou com sopro épico, quase mítico, "Galiléia", romance do médico e escritor cearense Ronaldo Correia de Brito, atualiza e interroga a tradição das narrativas que bebem na oralidade e na experiência arcaica do Nordeste brasileiro.
Econômica, seca e talhada a faca, a história dos três primos (Adonias, o médico, Ismael, o filho ilegítimo, e Davi, o pianista "poseur") que voltam ao sertão dos Inhamuns para velar a morte do avô, patriarca da fazenda Galiléia, de fumos bíblicos, encena a versão mais atual do conflito antigo entre cidade e campo, entre a promessa da liberdade das escolhas individuais, longe da paisagem de origem, e os laços com a terra, a um só tempo, patrimônio e ameaça de repetir um destino atávico de decadência e imobilismo.
A topografia das casas grandes, com suas culpas, seus loucos e bastardos, suas raízes fincadas em orgulho aristocrático e desfiadas em ladainhas genealógicas, preservadas em baús lacrados, suas leis costumeiras e histórias de honra ofendida e lavada a sangue, reaparecem sob o assombro de uma geração que, empobrecida, ensaiou fazer do mundo sua esquina, o cosmopolitismo, sua alforria, apenas para descobrir que o sertão está em toda a parte.
Não só "a Noruega é um sertão a menos 30 graus", como diz Ismael, mas outros cantos do mundo rico e desenvolvido lhes reservam o mesmo sentimento de desterro que o narrador, Adonias, acolhe em chave cética e desencantada, a filosofia do romeno Cioran se provando um substituto à altura do fatalismo bíblico de seus antepassados.
Se a narrador escolhe narrar a palo seco, desconfiado dos ocasionais transportes líricos que a memória da infância faz brotar ao contato com pássaros e plantas que abarrotaram sua linguagem dos primeiros nomes, o ritmo contrapontístico que Adonias impõe à procissão dos personagens da Galiléia e das lembranças que deles guarda confere um sentimento de urgência e tragédia ao relato da agonia do avô.
Símbolo de uma ilha no tempo que, aos poucos, vai cedendo à erosão moderna, a Galiléia abriga uma sabedoria proverbial e popular com a qual a nova geração não sabe como ajustar contas. Da benzedeira contadora de histórias ao tio erudito, sintomaticamente chamado Salomão, porta-voz de uma postura de convicta defesa da cultura regional, tudo no livro é revestido deste estranhamento fascinado, inquieto, que o reencontro provoca. Oralidade e solenidade bíblica, modernidade e tradição são os vasos comunicantes em que Ronaldo Correia de Brito busca uma matéria que, apesar de notoriamente batida, sabe fazer sua.


GALILÉIA

Autor: Ronaldo Correia de Brito
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 36,90 (240 págs.)
Avaliação: bom



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