São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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CRÍTICA

A novela das sete e o incômodo racial

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Parece politicamente correto, justo e verdadeiro e, no entanto, pode estar provocando um efeito inesperado. E tal efeito inesperado talvez seja uma das formas de entender a atenção que "Da Cor do Pecado" vem atraindo -semana passada, a novela chegou a picos de audiência raros para o horário, perto dos índices de novelas das oito.
Em tese, o fato de ser a primeira a ter uma protagonista negra é tanto a novidade quanto o principal mérito da novela. Dando visibilidade a uma mulher negra e fazendo essa personagem contracenar com um homem branco, a televisão estaria contribuindo para discutir o preconceito racial e reparando uma dívida histórica com os negros etc. Mas o problema é que, quando se dá visibilidade a uma questão complexa e tortuosa como a relação entre brancos e negros no Brasil, também se mostra alguma coisa da violência e hipocrisia que estão aí enfronhadas.
Em "Da Cor do Pecado" o que parece ser novo, de fato, é a franqueza naturalista com que se tratam as relações entre negros e brancos, coisa que transparece especialmente nos diálogos. Digamos que os personagens dão voz àquilo que não se fala publicamente, mas que se ouve a três por dois no ambiente privado. São os vilões que o fazem -a ambiciosa e cruel Bárbara (Giovana Antonelli) e o magnata sem coração Afonso (Lima Duarte)-, mas, como se sabe, os vilões não são odiados em bloco e, muitas vezes, são invejados por não serem submetidos às amarras morais (ou moralistas) dos seus companheiros mocinhos.
Recentemente, Afonso descreveu Felipe (Rocco Pitanga) como "um negro boa gente". Bárbara, a bandida, refere-se à mocinha negra interpretada por Taís Araújo, como "aquela neguinha". Como Afonso, milhares de espectadores formulam frases desse mesmo tipo, em que o "gente boa" se opõe ao ser negro, com um "apesar de" oculto na fala. E, na hora de desqualificar alguém, outros tantos fazem coro com Bárbara -destacam a origem étnica, nacionalidade, orientação sexual, gênero etc. daquele que querem xingar.
Um contra-exemplo pode ser ainda mais esclarecedor: ao revelar a Edilásia (Rosi Campos) que ela poderia ter um neto, Germana (Aracy Balabanian) faz questão de assinalar que o menino é mulato -coisa que enche as amigas de júbilo. Mesmo que aparentemente para o "bem", está reservada para os negros a condição de outro, daquele que não somos nós.
Num país que tem mais vergonha do que culpa de ser racista e continua tratando as outras etnias com enorme incômodo, a franqueza naturalista com que são registradas essas relações na novela acaba por ter uma função catártica.
E intenção esclarecedora transforma-se simplesmente em naturalização das operações mentais que colocam negros e brancos em territórios separados.

E-mail: biabramo.tv@uol.com.br


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