São Paulo, sábado, 14 de março de 2009

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Carrière reescreve histórias do mundo

Em nova obra, escritor francês relata anedotas judaicas, textos zen-budistas e parábolas árabes

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Aos 77 anos, o escritor, roteirista e dramaturgo francês Jean-Claude Carrière está preocupado com o futuro das narrativas, das palavras, das imagens e das línguas. E combate essa inquietação contando histórias próprias e alheias.
Acaba de sair no Brasil seu novo livro, "Contos Filosóficos do Mundo Inteiro", publicado no ano passado na França como segundo volume da coletânea "O Círculo dos Mentirosos". São centenas de pequenas histórias, quase todas anônimas, extraídas das mais diversas tradições. Há anedotas judaicas, parábolas árabes, passagens de evangelhos apócrifos, "koans" zen-budistas.
Carrière reconta tudo isso com a mesma desenvoltura com que roteirizou filmes de Buñuel, Godard, Wajda e Peter Brook, e adaptou o épico hindu "Mahabharata" para o teatro e o cinema.
Em entrevista por e-mail, o escritor diz que seu ideal de relato é aquele em que "o narrador desaparece por trás de seus personagens, não diz jamais "eu", mas isso não o impede de fazer passar suas ideias ou seus gostos pessoais, algumas vezes malandramente".
Malandragem é uma palavra que serve para caracterizar boa parte das histórias. Várias delas são protagonizadas por uma figura lendária, Nasreddin Hodja, um misto de pícaro e sábio popular.
"Dizem que Nasreddin foi o bufão de Tamerlão [conquistador turco do século 14]. Sua glória é considerável em todos os países muçulmanos, sobretudo no Irã e na Turquia. É encontrado também no Egito, no norte da África, na Sicília e na tradição judaica", diz Carrière. "Ele representa à perfeição a esperteza popular, mistura de ingenuidade aparente e profunda malandragem. É a porção de liberdade de que todos os povos têm necessidade."

Chicotada
Que ninguém espere, portanto, narrativas edificantes, politicamente corretas e com "moral da história". Carrière fez sua opção preferencial pela derrisão, pelas situações inesperadas e desconcertantes. Não por acaso, uma das formas de sua predileção é o "koan", minúsculos casos, situações ou diálogos paradoxais que fazem parte da tradição zen-budista. "O "koan" zen é como uma chicotada. Sua forma breve nos surpreende, nos obriga a nos interrogar e não necessariamente a responder."
Carrière reescreveu os relatos tentando preservar o espírito e o sabor originais, sem "europeizá-los". Sua preocupação é com o esmagamento das culturas ditas periféricas. "Palavras, expressões e até mesmo línguas desaparecem o tempo todo em proveito de poucas línguas dominantes que, por seu turno, não se enriquecem."
Contar as histórias do mundo é antídoto contra isso. "Fico impressionado ao ver que esses contos velozes, levados pelo vento das caravanas ou dos oceanos, sobrevivem às vezes mais solidamente que os edifícios de pedra. É uma das vitórias do imaginário sobre o real."
CONTOS FILOSÓFICOS DO MUNDO INTEIRO
Autor: Jean-Claude Carrère
Tradução: Cordelia Magalhães
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 49,90 (304 págs.)



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