São Paulo, sábado, 14 de março de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

A vez de Eurídice


Em "O Senhor Vai Entender" vão se desenhando os traços de uma versão desencantada da história de Orfeu e Eurídice


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

COMO ITALO Svevo e Umberto Saba, Claudio Magris (1939) nasceu em Trieste, porto de muitos povos e território de marcada vocação multicultural. Fronteiriça, a cidade acolheu, entre outros, no início do século 20, o jovem Joyce no exílio, professor de inglês da Berlitz local.
Aliás, segundo um ditado da região, até o mais perfeito imbecil, nascido em Trieste, ganhava o privilégio de berço de exercer uma estupidez elegantemente poliglota. Cadinho de culturas, foi austríaca, antes de italiana e esteve sempre sob forte influência eslovena. Não espanta que Magris, germanista, ensaísta e professor, além de romancista, apareça volta e meia entre os azarões cotados para o Nobel de literatura.
Sua obra está impregnada até o âmago da história centro-europeia, fazendo dele um portador cético dos seus valores em crise. Em "Danúbio" (1986), misto de ensaio erudito e romance de viagens, fez do curso do rio através do continente itinerário para uma investigação de legado e impasses desta Europa dentro da Europa, perseguida também em seu livro sobre "O Mito Habsbúrgico na Literatura Austríaca Moderna" (1963).
"O Senhor Vai Entender", narrativa brevíssima muito bem recriada em português por Maurício Santana Dias, se ocupa de fronteiras de outra ordem: as que opõem Eros e Tânatos, a criação e a morte.
Monólogo em chave dialogada, como o "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa (que Magris conhece e admira), o livro empresta voz ao desabafo de uma figura feminina confinada (e, aparentemente, resignada) à triste solidão em grupo característica do que, à primeira vista, sugere ao leitor uma instituição total, casa de repouso, hospital, retiro ou coisa que o valha.
Ao interlocutor silencioso, que não estimula e nem refreia suas palavras, guardião e responsável pela ordem do lugar, a mulher reconta a tentativa, definitiva e frustrada, que seu homem -um poeta, o poeta- empreendeu, contra todas as chances, de libertá-la, fazendo da separação definitiva e condenando-a ao recolhimento, sobrevivendo apenas como imagem em seu canto e memória.
Assim como na fala do Riobaldo de Rosa se revelam os vértices do mito fáustico, em "O Senhor Vai Entender" vão se desenhando, aos poucos, os traços essenciais de uma versão desencantada da história de Orfeu e Eurídice.
Neste Hades secularizado, administrado por burocrata zeloso, o tripé do mito clássico -arte, amor e morte- que Rilke, Gottfried Benn, H.D. e Ashberry, entre tantos outros, recriaram em tintas modernas, se renova na perspectiva feminina, humanizando a figura mágica do criador, tornando-a falível e próxima, sem banalizá-la.


O SENHOR VAI ENTENDER
Autor: Claudio Magris
Tradução: Maurício Santana Dias
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28,50 (56 págs.)
Avaliação: ótimo



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