|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
Seu olhar era sempre sorridente, infantil
BERNARDO AJZENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
Glauco foi a pessoa mais inofensiva que eu conheci. Uma
espécie de beato, não no sentido religioso do termo, mas como alguém que encarnava uma
pureza essencialmente humana, pairando entre os demais
num universo de contemplação
e distanciamento das coisas comezinhas de causar inveja.
Convivi com ele mais diretamente na Redação da Folha, no
final dos anos 80, quando eu
editava a primeira página do
jornal e lhe passava um "briefing" sobre os principais assuntos do dia para ele fazer a charge na página 2. O olhar dele era
sempre sorridente, infantil, daqueles que você tem medo de
ferir de tanta delicadeza. Às vezes, havia a sensação de que estava em outra, não entendia
nada do que eu falava, mas a
charge chegava sempre na hora
certa -e perfeita, impagável.
Mais tarde, quando exerci
funções administrativas na Redação, ele ia à minha sala para
conversar, e era com uma extrema timidez que abordava
assuntos de ordem material,
como se não tivesse a menor
dimensão do valor profissional
do seu talento. Em comum, tínhamos o fato de o filho dele,
quando pequeno, estudar com
a minha filha, na mesma classe.
Lembro que, quando Glauco
disse que ele se chamava Raoni,
eu pensei: que nome bonito e
corajoso -esse é o Glauco.
Tenho uma pequenina história, que também diz tanto sobre ele. Certo dia, levei-o comigo a uma reunião formal com
um alto executivo que estudava
a criação de um tabloide sobre
educação e queria que o cartunista famoso participasse. A sala do executivo era típica, as
roupas também (gravata, terno
etc.), como o jeito de falar: o
sorriso na hora certa, as gesticulações comedidas, tudo exato, claro, do começo ao fim. Do
outro lado estava o Glauco: atabalhoado, aquele olhar, aquelas
roupas despretensiosas (sandália, camiseta e jeans), cabelos
desajustados, aparentemente
nas nuvens, mas de ouvido
atento, sorriso tímido, mas
franco -uma criança na sala do
diretor da escola. Ao final,
quando saímos, Glauco se virou para mim e disse sorrindo,
perplexo: "Tem cada gente doida no mundo, né?"
BERNARDO AJZENBERG é autor de "Olhos Secos" (Rocco), entre outros livros; foi ombudsman da Folha de 2001 a 2004
Texto Anterior: GLAUCO Polícia identifica 2º suspeito de assassinato Próximo Texto: Mais de cem hinos daimistas embalam enterro em São Paulo Índice
|