São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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ANÁLISE

Seu olhar era sempre sorridente, infantil

BERNARDO AJZENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Glauco foi a pessoa mais inofensiva que eu conheci. Uma espécie de beato, não no sentido religioso do termo, mas como alguém que encarnava uma pureza essencialmente humana, pairando entre os demais num universo de contemplação e distanciamento das coisas comezinhas de causar inveja.
Convivi com ele mais diretamente na Redação da Folha, no final dos anos 80, quando eu editava a primeira página do jornal e lhe passava um "briefing" sobre os principais assuntos do dia para ele fazer a charge na página 2. O olhar dele era sempre sorridente, infantil, daqueles que você tem medo de ferir de tanta delicadeza. Às vezes, havia a sensação de que estava em outra, não entendia nada do que eu falava, mas a charge chegava sempre na hora certa -e perfeita, impagável.
Mais tarde, quando exerci funções administrativas na Redação, ele ia à minha sala para conversar, e era com uma extrema timidez que abordava assuntos de ordem material, como se não tivesse a menor dimensão do valor profissional do seu talento. Em comum, tínhamos o fato de o filho dele, quando pequeno, estudar com a minha filha, na mesma classe.
Lembro que, quando Glauco disse que ele se chamava Raoni, eu pensei: que nome bonito e corajoso -esse é o Glauco.
Tenho uma pequenina história, que também diz tanto sobre ele. Certo dia, levei-o comigo a uma reunião formal com um alto executivo que estudava a criação de um tabloide sobre educação e queria que o cartunista famoso participasse. A sala do executivo era típica, as roupas também (gravata, terno etc.), como o jeito de falar: o sorriso na hora certa, as gesticulações comedidas, tudo exato, claro, do começo ao fim. Do outro lado estava o Glauco: atabalhoado, aquele olhar, aquelas roupas despretensiosas (sandália, camiseta e jeans), cabelos desajustados, aparentemente nas nuvens, mas de ouvido atento, sorriso tímido, mas franco -uma criança na sala do diretor da escola. Ao final, quando saímos, Glauco se virou para mim e disse sorrindo, perplexo: "Tem cada gente doida no mundo, né?"

BERNARDO AJZENBERG é autor de "Olhos Secos" (Rocco), entre outros livros; foi ombudsman da Folha de 2001 a 2004



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