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Os últimos dias de um adolescente virgem
ARNALDO JABOR
Da equipe de articulistas
Chega. Hoje é o último capítulo.
Não posso gastar espaço de jornal
contando minhas pífias aventuras
de menino em busca de mulher. Se
bem que, cá entre nós, a vida política brasileira anda mais ridícula
ainda.
Onde estão os grandes gestos,
onde estão os românticos desatinos e mesmo os patéticos erros e
escândalos? O tucanato botou em
"banho-maria" até nossa mais
funda loucura.
Estamos mergulhados numa tragédia morna, uma tragédia sem
grandeza que não é assunto para
críticas inflamadas. Portanto, volto à carrocinha do meu querido
Bené, o pipoqueiro, e seu amigo
aleijadinho, o Alfredo -mestres
meus e de meu querido Cabeção,
campeão carioca de ejaculação
precoce, com sua marca recorde
de 23 segundos diante da revista
"Saúde e Nudismo", com suecas
posando em monocromatismo
azul.
Ao escrever essas linhas, dói-me
a memória, porque... eu cresci.
Dos meus 12 anos para os 16 foi
um pulo. Eu, comprido e magro,
com o apelido de Cegonha entre os
moleques e "espanador da lua"
para meu avô. Dói-me a memória,
porque eu fui crescendo, e o Bené
ficou no tempo, parado, servindo
pipoca, e Alfredinho,um dia, sumiu.
Não me lembro como, mas, pulando em suas muletinhas, ele desapareceu na distância, virou uma
esquina, ali da rua Candido Gaffrée com Roquete Pinto, e sumiu.
Essas pessoas tênues de antigamente me parecem mais sólidas
que os paralelepípedos de hoje
-por que será? Eu frequentava o
Bené ainda, mas já de calça comprida, tratando-o como uma figura do meu passado, com um certo
paternalismo de pequeno burguês
no "científico", já fumando meus
primeiros "Luis XV", com a manga da camisa dobrada e cabelo
penteado imitando o Elvis Presley.
Nessa época, meus amigos tinham
mudado.
Comecei a me dar com anormais. Explico; não, que fossem
malucos ou idiotas. Eram os "atípicos" do colégio. Nada de futebol, nada de brigas, só ópera. Isso.
Ópera. Tinha um colega de classe
que sabia de cor trechos do "Tristão e Isolda" em alemão, outro
que se atirava aos pés de divas e
cantoras, pálido e com negras
olheiras.
Eu também derivara para a
anormalidade, dividido entre um
romantismo dolorido e a fascinação pelas sacanagens inatingíveis:
Carlos Zefiro e Baudelaire.
Brancos, meio babacas, fracos e
espinhentos, nos aglomerávamos
nas óperas do Municipal. Pode?
Um rapaz de 15 anos, em vez de
perseguir meninas, se abandonar
à uma virgindade melancólica e ficar assistindo "Don Pasquale" ou
"Amelia al Ballo", à espera de um
milagre sexual? Pode.
Naquela época, nem roupa os jovens tinham. Uma calça jeans (dizia-se "Lee") americana valia ouro, mas a gente se vestia de paletó
do pai, calça de tropical do avô,
gravata torta, "glostora" e ia como
um bando de noviços à ópera. Pois
um dia o milagre aconteceu.
Estamos assistindo à "La Traviata" no Municipal, a turminha dos
espinhentos, dos branquelos, dos
intelectuais do medo (meu Deus,
quem era o soprano, Diva Pieranti
ou Violeta Coelho Neto?). Muito
bem, estou na "torrinha" sentado
vendo o "Alfredo" cantar "nel universo misterioso..." quando percebo uma mulher me olhando na fila
ao lado. Vem o intervalo e, no hall,
a mulher surge de novo e continua
olhando para mim.
Eu, ali no meio da turma, discutindo se a "coloratura" do tenor
estava legal. Ouço a voz a meu lado: "Está gostando da Traviata?"
O milagre estava acontecendo. Eu
senti que aquela mulher me chamava para o futuro. "Vamos embora daqui...", ela me disse. "Para
onde?", gemi eu, como um náufrago dividido entre meus amigos
que me olhavam pálidos e aquela
mulher bonita, morena, de vestido justo e sapato alto.
"Para minha casa", ela disse,
"vamos lá para casa". Sussurei para meus amigos em pânico: "Preciso de 50 pratas para o táxi..." e
fui deixando, em "travelling",
meus amigos virgens me olhando
ali do hall do teatro, enquanto eu
ia embora contra minha infância,
abandonando meu passado, obedecendo a ordem daquela desconhecida.
Eu ali com 16 anos e uma nota de
50 no bolso, olhando o grupo de
amigos num porto que se afastava,
enquanto eu me fazia ao mar. "Ao
ar" seria melhor, pois descobri
com encanto que a mulher era aeromoça da "Panair do Brasil", e
me levava no veloz "lotação" com
a destreza de uma atendente de
vôo, comandando tudo, fazendo-me perguntas que eu respondia corado, sem jeito, nervoso de
me sentir ali uma "presa", uma
conquista que a mulher fizera, não
eu.
Sim, eu era a conquista, o que
diminuiria meus méritos masculinos diante de Bené, mas que era
melhor do que nada, principalmente sendo a mulher (seu nome
era Marly) "aeromoça", o que me
permitiria encher a boca e dizer
que minha "dama" era daquela
volátil profissão tão sexualizada
pelo "marketing" das companhias
aéreas.
Elas sempre usando sapatos altos e saias justas, casquetes e meias
com risco negro atrás e, sempre,
sendo uma esperança de amor para os passageiros, o que me daria
um "upgrading" à minha primeira
noite.
E eu não teria sido iniciado por
uma mulher "da vida" qualquer e
diria: "Sim, Bené. Sim, Alfredinho
(que já tinha voado para esquinas
mais longínquas). Sim, Cabeção.
Você pode ser campeão ejaculatório, mas eu... (eu mentiria um
pouco) eu conquistei uma aeromoça da Panair do Brasil!".
Não me restou quase nada daquela noite no Catete. A aeromoça
morava na rua Bento Lisboa, num
conjugado partilhado com uma
colega que, quando chegamos, assistia televisão Tupi ("O Céu É o
Limite") e que foi à padaria, nos
deixando sozinhos.
Daquela noite ficou apenas a
sensação de um primeiro vôo, tomado por um corpo faminto de
mulher me levando numa viagem
sem escalas onde até hoje eu vivo.
Lembro-me dos gritos, dos cheiros, do gosto da boca. Lembro-me
dos moventes objetos do pobre
quarto conjugado. Lembro-me de
estar pensando no que diria a
meus amigos.
Lembro-me sobretudo de um retrato de Toni Curtis na mesinha de
cabeceira, supremo amor da fã aeronauta Marly e lembro-me também, mais que tudo, de minha
volta para casa -saindo ali no
Largo do Machado, vendo a noite
pela primeira vez, estando já no
futuro do subjuntivo ("quando eu
amar, quando vós estiverdes já no
mundo dos homens").
Lembro-me da volta para uma
"outra casa", "outros pais", como
se eu estivesse chegando a um passado. Lembro-me também do que
contei "aumentando pontos" para
meus amigos Bené e Cabeção, já
que Alfredinho sumira no tempo.
Lembro-me que senti uma leve
tristeza no Bené que, agora, não
teria muito a me ensinar. Lembro-me que fiquei com aquela aria
da "Traviata" na cabeça muito
tempo: "nel universo misterioso...".
Anos depois, viajando num "Caravelle", encontrei Marly, que me
serviu uns croquetes frios numa
bandejinha e não me reconheceu.
E hoje, 40 anos depois, aqui de
Nova York, posso garantir ao Bené que esse universo é misterioso
mesmo. Mas devo também agradecer a ele, que me ensinou a eterna verdade sobre as mulheres: ou
elas são doces ou salgadas. É isso
aí. Volto ao presente.
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