São Paulo, terça, 14 de abril de 1998

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Os últimos dias de um adolescente virgem

ARNALDO JABOR
Da equipe de articulistas

Chega. Hoje é o último capítulo. Não posso gastar espaço de jornal contando minhas pífias aventuras de menino em busca de mulher. Se bem que, cá entre nós, a vida política brasileira anda mais ridícula ainda.
Onde estão os grandes gestos, onde estão os românticos desatinos e mesmo os patéticos erros e escândalos? O tucanato botou em "banho-maria" até nossa mais funda loucura.
Estamos mergulhados numa tragédia morna, uma tragédia sem grandeza que não é assunto para críticas inflamadas. Portanto, volto à carrocinha do meu querido Bené, o pipoqueiro, e seu amigo aleijadinho, o Alfredo -mestres meus e de meu querido Cabeção, campeão carioca de ejaculação precoce, com sua marca recorde de 23 segundos diante da revista "Saúde e Nudismo", com suecas posando em monocromatismo azul.
Ao escrever essas linhas, dói-me a memória, porque... eu cresci. Dos meus 12 anos para os 16 foi um pulo. Eu, comprido e magro, com o apelido de Cegonha entre os moleques e "espanador da lua" para meu avô. Dói-me a memória, porque eu fui crescendo, e o Bené ficou no tempo, parado, servindo pipoca, e Alfredinho,um dia, sumiu.
Não me lembro como, mas, pulando em suas muletinhas, ele desapareceu na distância, virou uma esquina, ali da rua Candido Gaffrée com Roquete Pinto, e sumiu.
Essas pessoas tênues de antigamente me parecem mais sólidas que os paralelepípedos de hoje -por que será? Eu frequentava o Bené ainda, mas já de calça comprida, tratando-o como uma figura do meu passado, com um certo paternalismo de pequeno burguês no "científico", já fumando meus primeiros "Luis XV", com a manga da camisa dobrada e cabelo penteado imitando o Elvis Presley. Nessa época, meus amigos tinham mudado.
Comecei a me dar com anormais. Explico; não, que fossem malucos ou idiotas. Eram os "atípicos" do colégio. Nada de futebol, nada de brigas, só ópera. Isso. Ópera. Tinha um colega de classe que sabia de cor trechos do "Tristão e Isolda" em alemão, outro que se atirava aos pés de divas e cantoras, pálido e com negras olheiras.
Eu também derivara para a anormalidade, dividido entre um romantismo dolorido e a fascinação pelas sacanagens inatingíveis: Carlos Zefiro e Baudelaire.
Brancos, meio babacas, fracos e espinhentos, nos aglomerávamos nas óperas do Municipal. Pode? Um rapaz de 15 anos, em vez de perseguir meninas, se abandonar à uma virgindade melancólica e ficar assistindo "Don Pasquale" ou "Amelia al Ballo", à espera de um milagre sexual? Pode.
Naquela época, nem roupa os jovens tinham. Uma calça jeans (dizia-se "Lee") americana valia ouro, mas a gente se vestia de paletó do pai, calça de tropical do avô, gravata torta, "glostora" e ia como um bando de noviços à ópera. Pois um dia o milagre aconteceu.
Estamos assistindo à "La Traviata" no Municipal, a turminha dos espinhentos, dos branquelos, dos intelectuais do medo (meu Deus, quem era o soprano, Diva Pieranti ou Violeta Coelho Neto?). Muito bem, estou na "torrinha" sentado vendo o "Alfredo" cantar "nel universo misterioso..." quando percebo uma mulher me olhando na fila ao lado. Vem o intervalo e, no hall, a mulher surge de novo e continua olhando para mim.
Eu, ali no meio da turma, discutindo se a "coloratura" do tenor estava legal. Ouço a voz a meu lado: "Está gostando da Traviata?" O milagre estava acontecendo. Eu senti que aquela mulher me chamava para o futuro. "Vamos embora daqui...", ela me disse. "Para onde?", gemi eu, como um náufrago dividido entre meus amigos que me olhavam pálidos e aquela mulher bonita, morena, de vestido justo e sapato alto.
"Para minha casa", ela disse, "vamos lá para casa". Sussurei para meus amigos em pânico: "Preciso de 50 pratas para o táxi..." e fui deixando, em "travelling", meus amigos virgens me olhando ali do hall do teatro, enquanto eu ia embora contra minha infância, abandonando meu passado, obedecendo a ordem daquela desconhecida.
Eu ali com 16 anos e uma nota de 50 no bolso, olhando o grupo de amigos num porto que se afastava, enquanto eu me fazia ao mar. "Ao ar" seria melhor, pois descobri com encanto que a mulher era aeromoça da "Panair do Brasil", e me levava no veloz "lotação" com a destreza de uma atendente de vôo, comandando tudo, fazendo-me perguntas que eu respondia corado, sem jeito, nervoso de me sentir ali uma "presa", uma conquista que a mulher fizera, não eu.
Sim, eu era a conquista, o que diminuiria meus méritos masculinos diante de Bené, mas que era melhor do que nada, principalmente sendo a mulher (seu nome era Marly) "aeromoça", o que me permitiria encher a boca e dizer que minha "dama" era daquela volátil profissão tão sexualizada pelo "marketing" das companhias aéreas.
Elas sempre usando sapatos altos e saias justas, casquetes e meias com risco negro atrás e, sempre, sendo uma esperança de amor para os passageiros, o que me daria um "upgrading" à minha primeira noite.
E eu não teria sido iniciado por uma mulher "da vida" qualquer e diria: "Sim, Bené. Sim, Alfredinho (que já tinha voado para esquinas mais longínquas). Sim, Cabeção. Você pode ser campeão ejaculatório, mas eu... (eu mentiria um pouco) eu conquistei uma aeromoça da Panair do Brasil!".
Não me restou quase nada daquela noite no Catete. A aeromoça morava na rua Bento Lisboa, num conjugado partilhado com uma colega que, quando chegamos, assistia televisão Tupi ("O Céu É o Limite") e que foi à padaria, nos deixando sozinhos.
Daquela noite ficou apenas a sensação de um primeiro vôo, tomado por um corpo faminto de mulher me levando numa viagem sem escalas onde até hoje eu vivo.
Lembro-me dos gritos, dos cheiros, do gosto da boca. Lembro-me dos moventes objetos do pobre quarto conjugado. Lembro-me de estar pensando no que diria a meus amigos.
Lembro-me sobretudo de um retrato de Toni Curtis na mesinha de cabeceira, supremo amor da fã aeronauta Marly e lembro-me também, mais que tudo, de minha volta para casa -saindo ali no Largo do Machado, vendo a noite pela primeira vez, estando já no futuro do subjuntivo ("quando eu amar, quando vós estiverdes já no mundo dos homens").
Lembro-me da volta para uma "outra casa", "outros pais", como se eu estivesse chegando a um passado. Lembro-me também do que contei "aumentando pontos" para meus amigos Bené e Cabeção, já que Alfredinho sumira no tempo.
Lembro-me que senti uma leve tristeza no Bené que, agora, não teria muito a me ensinar. Lembro-me que fiquei com aquela aria da "Traviata" na cabeça muito tempo: "nel universo misterioso...".
Anos depois, viajando num "Caravelle", encontrei Marly, que me serviu uns croquetes frios numa bandejinha e não me reconheceu.
E hoje, 40 anos depois, aqui de Nova York, posso garantir ao Bené que esse universo é misterioso mesmo. Mas devo também agradecer a ele, que me ensinou a eterna verdade sobre as mulheres: ou elas são doces ou salgadas. É isso aí. Volto ao presente.



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