São Paulo, sábado, 14 de maio de 2011

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CRÍTICA CONTOS

Estilo de "Jogos de Azar" se destaca ante crítica política

Neorrealismo urbano de José Cardoso Pires incorpora jargão malandro

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

José Cardoso Pires (1925-1998), escritor, jornalista e ativista político antissalazarista, é autor célebre em Portugal. No Brasil, teve o destino comum dos autores portugueses contemporâneos.
Dir-se-ia que as aves que aqui gorjeiam e as que gorjeiam por lá não costumam permutar os pátrios galhos.
Há exceções, como José Saramago e António Lobo Antunes -este último sabidamente protegido de Cardoso Pires. Já hoje, para apresentar o mestre, tem-se de falar do discípulo.
"Jogos de Azar" (1963) é uma coletânea de contos extraída de seus dois primeiros livros: "Os Caminheiros e Outros Contos" (1949) e "Histórias de Amor" (1952).
São nove "histórias de desocupados", isto é, narrativas tipológicas de perdedores, "pequenos falhados" e "condenados a tropeços" por efeito dos "caprichos" de governantes que lhes retiram "autoridade cívica" e os deixam sem meios objetivos de "exercício das capacidades do homem".
A cartilha é antiga sem desfigurar os contos. Falam de um comboio em que vão três presos e seus sete guardas, entretidos em trocar gabolices e ocultar temores.
Descrevem o serão no qual o pai violento e beberrão chega tarde e agride o filho aproveitador, ambos vivendo à custa das mulheres da casa, com a saúde já perdida na costura para fora e na lida doméstica.
A caminhada ao sol de dois homens, sendo que um deles, cego e violeiro, mal sabe que está sendo levado para venda no negócio da mendicância; o marido que lê um romance de amor na cama, enquanto a mulher reclama de coisas práticas e da falta de conversa entre eles.
Há ainda o caso do negro que leva três homens para se aproveitar da menina de 15 anos que se entrega a ele; o relato de um acidente de trabalho na construção de uma rodovia, que suspende por alguns instantes as preocupações de um operário com a mulher em vias de dar à luz.
O encontro dos amantes num hotel, no qual a mulher se diz habituada a viver de ódio e de pena; as horas tensas passadas entre a sogra que reza e a nora que espera a hora do parto, enquanto o atraso do futuro pai faz lembrar as recentes prisões de operários em greve.

NEORREALISMO
Enfim, há um conto mais longo sobre uma jovem prostituta, precocemente morta, que mastigava fósforos e era mordida pela avó cega.
Não é preciso dizer mais para que se perceba por que Cardoso Pires é dado como autor do "neorrealismo" português. Seus autores se reconheciam em torno do valor da denúncia social e política, baseado num modelo de representação realista.
A Cardoso Pires, porém, não raro lhe percebem rasgos surrealistas, como despontam no caso da rapariga dos fósforos.
Lendo agora os contos, nem vem isso especialmente ao caso, nem ressalta a mensagem política. O melhor que apresenta são as credenciais do estilista, que não raro incorporam o jargão malandro da cidade. Talvez seja o primeiro neorrealista urbano, mas não há dúvida de que é escritor íntimo do seu instrumento.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp.

JOGOS DE AZAR
AUTOR José Cardoso Pires
EDITORA Bertrand
QUANTO R$ 29 (240 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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