São Paulo, quinta-feira, 14 de junho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tremei, petit gâteau

O festejado bolinho confronta-se agora com a chegada ao Brasil da receita original que o inspirou

JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA

Eu odeio petit gâteau -a sobremesa mais festejada e que já vai se tornando a mais longeva da atualidade. Mas devo ser o único na cidade, no país, talvez no mundo, a não gostar. Assim, não me resta alternativa senão curvar-me ao gosto geral e homenagear aqui esta guloseima que nos últimos dez anos se tornou uma unanimidade onipresente nos cardápios.
Embora tenha sido inspirada em uma receita complicada e deliciosa criada em 1981 por Michel Bras (um gênio da cozinha, escondido na paisagem inóspita da Auvergne francesa, onde tem um restaurante com seu nome), o petit gâteau que se popularizou é uma sobremesa relativamente simples. Apenas um bolo mal-assado. Despeja-se uma massa de bolo dentro de forminhas, coloca-se para assar menos tempo que o necessário para que o bolo fique pronto e... pronto: a parte de fora fica firme e a de dentro, crua, líquida, como se fosse uma calda, embora não seja exatamente uma calda -é um bolo cru.
Quando criança, aprendi com os adultos que comer bolo cru dá dor de barriga. Depois de adulto, aprendi na prática que farinha crua -por exemplo, num creme béchamel cozido por pouco tempo- deixa um gosto ruim de... farinha crua. É o que me incomoda no petit gâteau, aquela "calda" farinhenta (por mais que as melhores receitas tomem o cuidado de colocar bem menos farinha do que num bolo normal).
Por outro lado, o doce tem atrativos que enlouquecem o público: é de chocolate (na versão original, pelo menos) e é molinho, quase líquido por dentro. Chocolate + creminho = satisfação garantida dos instintos mais recônditos e incontornáveis do paladar.
Imaginem então o efeito provocado pelo doce original de Michel Bras, chamado por ele "biscuit tiède de chocolat coulant" (bolo morno de chocolate derretido) e mantido até hoje, em quatro versões, no seu cardápio: ele é feito em três etapas (uma de preparo da calda -chocolate com café, creme de leite, manteiga-, que depois de pronta é congelada; outra de preparo da massa que vai envolver a calda; e finalmente a delicada inserção da primeira na segunda). Cada etapa é longa e cheia de ingredientes (só não tem... farinha de trigo, nem na massa, feita de creme de arroz, chocolate, cacau, manteiga, amêndoas e ovos). Depois de montado, o doce vai à geladeira e, em seguida, ao forno. Assa por fora, enquanto a calda derrete por dentro. Sublime. E o melhor: versões próximas à dele começam a surgir no Brasil.

Adaptação simplificada
O petit gâteau chegou aqui em meados dos anos 90 e invadiu os restaurantes cerca de dez anos atrás. Sua primeira aparição pública foi provavelmente num festival de foie gras realizado no Le Coq Hardy em outubro de 1994, sob a batuta do chef francês Erick Jacquin (que no ano seguinte se transferiria de vez para o restaurante -hoje é proprietário do La Brasserie Erick Jacquin).
"Esta sobremesa já existia havia uns três anos no restaurante perto de Paris onde eu trabalhava, o Aux Comtes de Gascogne", lembra Jacquin. "Não era muito conhecida na França nem era especialidade do restaurante; parece que era inspirada no Michel Bras. Eu a executei no festival e, quando mudei para cá, coloquei no cardápio do Le Coq Hardy, com o nome de petit gâteau."
Na mesma época, esta adaptação bem simplificada da sobremesa de Bras fazia sucesso em Nova York -de onde igualmente migrou para o Brasil, depois de se tornar uma marca registrada dos restaurantes Jean-Georges e Jo Jo (ambos do chef francês Jean-Georges Vongerichten) com o nome "warm, soft chocolate cake" (bolo de chocolate morno e macio).
O chef Carlos Siffert, hoje dono da rotisserie e bufê Tambor, o comeu em NY. Primeiro no Gramercy Tavern, em 1994, onde estagiou (mas lá era feito à maneira original de Bras, com recheio de chocolate previamente congelado). Depois no Jo Jo, já a versão simplificada.
"Quando voltei ao Brasil, começamos o projeto do restaurante Tambor e um dia vi na TV o próprio Jean-Georges num programa que adorava, o "World Class Cuisine", e ele preparou o tal do "warm cake". Foi aí que aprendi, e virou a "torta morna de chocolate", a primeira sobremesa (talvez o primeiro item, até) do nosso cardápio. Abrimos em dezembro de 1995, e as pessoas foram provando, gostando, a notícia foi se espalhando...", lembra Siffert.
Também nesta época outro chef brasileiro, Luiz Cintra (hoje dono da hamburgueria St. Louis), conheceu o bolinho em Nova York, no mesmo Jo Jo. "Fui falar com o chef, implorei a ele que me desse a receita. Ele não deu, mas explicou por cima como era feito. De volta ao Brasil, fui testando, testando, até conseguir fazer", diz Cintra. "Creio que coloquei em alguns restaurantes onde prestava consultoria e depois no cardápio do restaurante que abri em 1995, o Maria, sempre com o nome de bolo Jo Jo. Minha mulher começou a fazer para vender e foi um sucesso, vários restaurantes compravam."

Até no supermercado
Desde então, os amantes do doce não passaram mais necessidade: hoje é possível encontrá-lo até nas prateleiras de supermercado. E em versões com outros sabores -como o de banana e o de doce-de-leite lançados, ainda naquela época, por Carla Pernambuco, do Carlota.
E eu? Tampouco fiquei órfão, pois agora, depois de uma década de recheios com farinha, começam a surgir em São Paulo seguidores da receita original do mago Michel Bras. O primeiro deles foi Pascal Valero, que no reinaugurado Le Coq Hardy introduziu um "gâteau coulant au chocolat", inspirado em Bras: bolo por fora, chocolate por dentro. A mesma direção seguida desde a semana passada pelo chef Raphael Durand, que lançou seu "biscuit de chocolate", igualmente inspirando-se em Bras ("só que precisei adaptar a receita dele, é muito complicada e tem ingredientes que não encontramos aqui"). Finalmente o mundo volta ao normal: o bolo vem assado, não cru, e a calda tem chocolate, não farinha. Alívio.


Texto Anterior: Nina Horta: Itinerário gastronômico
Próximo Texto: Música: Pedro Luís quer "descobrir" sons pelo país
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.