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Tremei, petit gâteau
O festejado bolinho confronta-se agora com a chegada ao Brasil da receita original que o inspirou
JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA
Eu odeio petit gâteau -a sobremesa mais festejada e que já
vai se tornando a mais longeva
da atualidade. Mas devo ser o
único na cidade, no país, talvez
no mundo, a não gostar. Assim,
não me resta alternativa senão
curvar-me ao gosto geral e homenagear aqui esta guloseima
que nos últimos dez anos se
tornou uma unanimidade onipresente nos cardápios.
Embora tenha sido inspirada
em uma receita complicada e
deliciosa criada em 1981 por
Michel Bras (um gênio da cozinha, escondido na paisagem
inóspita da Auvergne francesa,
onde tem um restaurante com
seu nome), o petit gâteau que se
popularizou é uma sobremesa
relativamente simples. Apenas
um bolo mal-assado. Despeja-se uma massa de bolo dentro de
forminhas, coloca-se para assar
menos tempo que o necessário
para que o bolo fique pronto e...
pronto: a parte de fora fica firme e a de dentro, crua, líquida,
como se fosse uma calda, embora não seja exatamente uma
calda -é um bolo cru.
Quando criança, aprendi
com os adultos que comer bolo
cru dá dor de barriga. Depois de
adulto, aprendi na prática que
farinha crua -por exemplo,
num creme béchamel cozido
por pouco tempo- deixa um
gosto ruim de... farinha crua. É
o que me incomoda no petit gâteau, aquela "calda" farinhenta
(por mais que as melhores receitas tomem o cuidado de colocar bem menos farinha do
que num bolo normal).
Por outro lado, o doce tem
atrativos que enlouquecem o
público: é de chocolate (na versão original, pelo menos) e é
molinho, quase líquido por
dentro. Chocolate + creminho =
satisfação garantida dos instintos mais recônditos e incontornáveis do paladar.
Imaginem então o efeito provocado pelo doce original de
Michel Bras, chamado por ele
"biscuit tiède de chocolat coulant" (bolo morno de chocolate
derretido) e mantido até hoje,
em quatro versões, no seu cardápio: ele é feito em três etapas
(uma de preparo da calda
-chocolate com café, creme de
leite, manteiga-, que depois de
pronta é congelada; outra de
preparo da massa que vai envolver a calda; e finalmente a
delicada inserção da primeira
na segunda). Cada etapa é longa
e cheia de ingredientes (só não
tem... farinha de trigo, nem na
massa, feita de creme de arroz,
chocolate, cacau, manteiga,
amêndoas e ovos). Depois de
montado, o doce vai à geladeira
e, em seguida, ao forno. Assa
por fora, enquanto a calda derrete por dentro. Sublime. E o
melhor: versões próximas à dele começam a surgir no Brasil.
Adaptação simplificada
O petit gâteau chegou aqui
em meados dos anos 90 e invadiu os restaurantes cerca de dez
anos atrás. Sua primeira aparição pública foi provavelmente
num festival de foie gras realizado no Le Coq Hardy em outubro de 1994, sob a batuta do
chef francês Erick Jacquin (que
no ano seguinte se transferiria
de vez para o restaurante -hoje é proprietário do La Brasserie Erick Jacquin).
"Esta sobremesa já existia
havia uns três anos no restaurante perto de Paris onde eu
trabalhava, o Aux Comtes de
Gascogne", lembra Jacquin.
"Não era muito conhecida na
França nem era especialidade
do restaurante; parece que era
inspirada no Michel Bras. Eu a
executei no festival e, quando
mudei para cá, coloquei no cardápio do Le Coq Hardy, com o
nome de petit gâteau."
Na mesma época, esta adaptação bem simplificada da sobremesa de Bras fazia sucesso
em Nova York -de onde igualmente migrou para o Brasil, depois de se tornar uma marca registrada dos restaurantes Jean-Georges e Jo Jo (ambos do chef
francês Jean-Georges Vongerichten) com o nome "warm,
soft chocolate cake" (bolo de
chocolate morno e macio).
O chef Carlos Siffert, hoje dono da rotisserie e bufê Tambor,
o comeu em NY. Primeiro no
Gramercy Tavern, em 1994, onde estagiou (mas lá era feito à
maneira original de Bras, com
recheio de chocolate previamente congelado). Depois no
Jo Jo, já a versão simplificada.
"Quando voltei ao Brasil, começamos o projeto do restaurante Tambor e um dia vi na TV
o próprio Jean-Georges num
programa que adorava, o
"World Class Cuisine", e ele preparou o tal do "warm cake". Foi
aí que aprendi, e virou a "torta
morna de chocolate", a primeira sobremesa (talvez o primeiro item, até) do nosso cardápio.
Abrimos em dezembro de 1995,
e as pessoas foram provando,
gostando, a notícia foi se espalhando...", lembra Siffert.
Também nesta época outro
chef brasileiro, Luiz Cintra (hoje dono da hamburgueria St.
Louis), conheceu o bolinho em
Nova York, no mesmo Jo Jo.
"Fui falar com o chef, implorei
a ele que me desse a receita. Ele
não deu, mas explicou por cima
como era feito. De volta ao Brasil, fui testando, testando, até
conseguir fazer", diz Cintra.
"Creio que coloquei em alguns
restaurantes onde prestava
consultoria e depois no cardápio do restaurante que abri em
1995, o Maria, sempre com o
nome de bolo Jo Jo. Minha mulher começou a fazer para vender e foi um sucesso, vários restaurantes compravam."
Até no supermercado
Desde então, os amantes do
doce não passaram mais necessidade: hoje é possível encontrá-lo até nas prateleiras de supermercado. E em versões com
outros sabores -como o de banana e o de doce-de-leite lançados, ainda naquela época, por
Carla Pernambuco, do Carlota.
E eu? Tampouco fiquei órfão,
pois agora, depois de uma década de recheios com farinha, começam a surgir em São Paulo
seguidores da receita original
do mago Michel Bras. O primeiro deles foi Pascal Valero,
que no reinaugurado Le Coq
Hardy introduziu um "gâteau
coulant au chocolat", inspirado
em Bras: bolo por fora, chocolate por dentro. A mesma direção
seguida desde a semana passada pelo chef Raphael Durand,
que lançou seu "biscuit de chocolate", igualmente inspirando-se em Bras ("só que precisei
adaptar a receita dele, é muito
complicada e tem ingredientes
que não encontramos aqui").
Finalmente o mundo volta ao
normal: o bolo vem assado, não
cru, e a calda tem chocolate,
não farinha. Alívio.
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