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MINHA HISTÓRIA DENISE BOTTMANN, 55
guerrilheira antiplágio
(...)Não existe uma tradução igual a outra. E é por isso que um tradutor é considerado um autor
(...)Compro um exemplar, comparo e vejo que são iguais, que é plágio. Publico no blog
(...)Não tomaram providência, entro no Ministério Público
FABIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL A REGISTRO (SP)
Uma vez, no Orkut, o tradutor Saulo von Randow Júnior comentou que tinha pegado um volume do "Ivanhoé", do Walter Scott, publicado pela Nova Cultural
em nome de um fulano de tal
qualquer e descobriu que a
tradução era idêntica à do
Brenno Silveira.
Depois descobri que desde
2001, 2002 Alfredo Monte e o
poeta e crítico Ivo Barroso já
denunciavam a prática de
plágio. Logo a seguir [em
2007], a Folha publicou uma
matéria grande sobre a Martin Claret e os plágios [de tradução] de "Os Irmãos Karamázov" [de Dostoiévski] e "A
República", de Platão.
Comparei outros volumes
da Nova Cultura com a Abril
Cultural, tinham nomes diferentes de tradutores e o texto
igual. Ôpa, peraí. Dois livros
numa coleção só: vamos ver
se tem mais. Assim comecei.
Num egroup de tradutores, o pessoal ficou revoltado
com essa história toda, e surgiu um blog, "assinado-tradutores". Por divergências
internas, saí. Em novembro
de 2008, criei o naogostodeplagio.blogspot.com.
TRADUTOR É AUTOR
Não existe uma tradução
igual a outra. E é por isso que
um tradutor é considerado
um autor, é por isso que a legislação, do Brasil e do mundo inteiro, desde 1880, diz
que tradutor é autor.
Tendo esse pressuposto,
vem a pesquisa sistemática.
Você pega "A Divina Comédia": quantas traduções existem? Eu tenho "A Divina Comédia" pela Abril Cultural,
com tradução de Hernâni Donato. Como será essa tradução da Nova Cultural em nome de Fábio M. Alberti?
Compro um exemplar,
comparo e vejo que são
iguais, que é plágio. Copio
trechos e publico no blog.
Só passo de uma editora à
outra depois de ter esgotado
aquele catálogo. Leva umas
quatro horas por dia, e uns 15
dias pra eu detectar -até ir
atrás, pesquisar as várias traduções existentes, encomendar, receber, comparar e chegar a uma conclusão. Antes
de publicar, entro em contato
com as editoras. Aí entro no
site das livrarias para ver se
tiraram de circulação.
Não tomaram providência, entro com pedido de representação no Ministério
Público. Tenho 15 pedidos.
Já denunciei 110, 120 casos
de plágio, documentados no
meu blog. De 16 editoras.
No caso da Landmark, fui
avisada [de suposto plágio
da tradução] da "Persuasão", de Jane Austen, e do
"Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Brontë.
Entrei com representação
contra a Landmark em maio
[de 2009], e em setembro eles
entraram com ação contra
mim, contra a [blogueira] Raquel Sallaberry, porque deu
o link para o meu post, e os
provedores dos blogs. Recebi
[a notificação] em fevereiro.
MANIFESTO
E aí foi muito bonito, porque alguns colegas -Jório
Dauster, Ivo Barroso, Ivone
Benedetti e Heloísa Jahn-
escreveram um manifesto
em minha defesa, que teve
quase 3.000 assinaturas.
A Landmark pediu a remoção imediata do blog, aí a coisa se abriu mais, porque pegou a liberdade de expressão
na blogosfera -e quem disse
isso foi o juiz que indeferiu o
pedido de liminar.
Seria uma intimidação a
mais -já sofri tanta. Foram
duas da Martin Claret, uma
notificação extrajudicial, pela editora, e uma ação do sr.
Martin Claret -esta o juiz julgou improcedente, eles recorreram e perderam. Agora
só cabe recurso no Supremo.
Tive uma intimidação do
sr. Luiz Fernando Emediato
[denúncia de três livros plagiados pela Jardim dos Livros, da qual ele é sócio].
A AMARRAÇÃO
Era difícil no começo entender a amarração da coisa.
Hoje entendo que é uma consequência razoavelmente direta da lei do direito autoral
de 1998, a lei 9.610.
Porque [as obras plagiadas] são basicamente obras
cujo original está em domínio público e cujas traduções
no Brasil estão esgotadas
-de editoras que fecharam
ou que foram compradas.
Mas são traduções que estão protegidas pela lei, que
determina que as obras só
podem entrar em domínio
público decorridos 70 anos
após a morte do autor.
SEM XEROX, COM PLÁGIO
Essas obras são o quê? Platão, Aristóteles, Max Weber,
Kant, Hobbes, Locke... São
para o público universitário.
São obras que até existem
nas bibliotecas das universidades, são bibliografia em
ciências humanas. Só que
são esgotadas, e a lei de 1998
proibiu o xerox.
Das 16 editoras [que pesquisei], apenas duas praticavam plágio antes de 98. Tenho a maior clareza que foi a
proibição do xerox que criou
um mercado líquido e certo.
Vêm os espertos, pegam
essas traduções que ninguém mais lembra, porque
são dos anos 30, 40, 50, crau,
mudam o nome, publicam e
vende que nem pãozinho
quente. Cinco, dez, 20 edições, reedições. Os tradutores estão mortos, as editoras
estão fechadas, as que não
estão fechadas poucos se interessam, os herdeiros dos
tradutores não estão nem aí.
Não faço isso por interesse
profissional ou por categoria.
É que eu tenho 55 anos, sou
pré-internet. E junta minha
formação de historiadora e a
ideia de que a cultura não se
constrói num estalar de dedos. O português é uma língua secundária, o Brasil é um
país que depende essencialmente de tradução, quer dizer, a tradução não é só uma
tradução. Basta pegar quem
são nossos tradutores: Machado, Bandeira, Drummond, Cecília Meirelles.
QUEBRA-CABEÇAS
Uma coisa que gosto muito
é o desafio mental, intelectual, algo meio competitivo
de você consigo mesmo. É
quase um jogo, uma espécie
de quebra-cabeças.
Tenho uns 80 livros traduzidos, de inglês, francês e italiano, sempre em humanidades, história da arte -não faço tradução literária nem técnica. Trabalho para três editoras: Companhia das Letras,
Cosac Naify e L&PM.
Não, guerrilheira não.
Uma vez eu me referi ao nao
gostodeplagio como um
blog de combate.
Entro com representação
nos casos de quem não dá satisfação. A Nova Cultural relançou uma edição especial
da "Divina Comédia", ressarciu tradutores. Tenho a satisfação de dizer que de seis a
oito editoras retiraram [as
edições plagiadas]. Eu escrevo, telefono, falo. Você tem
resultados concretos. É isso
que me permite continuar.
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