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São Paulo, segunda-feira, 14 de julho de 2003

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LIVRO

Sucesso da série criada pela escocesa J.K. Rowling partiu do reconhecimento das crianças, de "baixo para cima"

Harry Potter derrota máquina do mercado

Associated Press
Crianças americanas lêem na loja, no dia do lançamento, "A Ordem da Fênix"


FRANK RICH
DO "NEW YORK TIMES"

Isso é o que há de errado com as crianças da era digital. Elas vivem em frente da TV e das telas de seus computadores. Não conseguem prestar atenção em nada. Vivem em regime multitarefa, e a única coisa em que se concentram são os videogames. Compram qualquer porcaria que os gigantes da mídia decidam lhes empurrar, e a abandonam assim que surge o próximo grande engodo.
Essa é apenas uma lista curta das suposições mais fortes que foram desmanteladas pela publicação de "Harry Potter e a Ordem da Fênix". Apenas no lançamento, dia 21/6, o quinto livro de J.K. Rowling vendeu 5 milhões de cópias nos EUA. Se calcularmos um preço médio de US$ 20 (cerca de R$ 58) por livro, a bilheteria do dia chega a US$ 100 milhões.
É mais dinheiro do que a fantasia concorrente oferecida por Hollywood, "Hulk", faturou em todo o seu final de semana de estréia e, presumindo a média bastante conservadora de dois leitores por livro, Harry Potter atingiu também uma audiência maior.
Já se disse muito sobre como a série Harry Potter, em menos de cinco anos, fez com que as crianças voltassem a ler. Mais que isso, a fome pelos romances de Rowling demonstra que as crianças são muito mais capazes de escolher do que os adultos acreditam.
Os fascinados por Potter não precisam de cortes cinematográficos frenéticos para lhes renovar a atenção. Estão satisfeitos em se concentrar em uma narrativa longa que, em "A Ordem da Fênix", atinge proporções dignas de Dickens, com 870 páginas. Acima de tudo, a popularidade da série é prova de que os jovens reconhecem qualidade quando a vêem.
Eles perceberam o talento de Rowling desde o começo. Apesar de todas as medidas de segurança melodramáticas, das festas à fantasia e das demais armações que antecederam o lançamento do novo volume da série, é preciso lembrar que a mania de Harry Potter não foi fabricada por um conglomerado de mídia.
Sua primeira editora na Inglaterra, a Bloomsbury, é uma empresa independente, e o mesmo vale para a Scholastic, que prescientemente adquiriu os direitos norte-americanos do projeto.
Quando o primeiro título da série, "Harry Potter e a Pedra Filosofal", foi publicado nos EUA, em setembro de 1998, a tiragem inicial era de 35 mil exemplares, e o orçamento promocional era de US$ 100 mil. Se fica acima da média em termos de livros infantis, é uma gota no oceano da mídia.
O sucesso do livro borbulhou espontaneamente de baixo para cima, propelido pela propaganda de boca em boca. No começo, os adultos não percebiam o que estava acontecendo. O "New York Times", por exemplo, só resenhou o primeiro livro da série cinco meses depois de sua publicação. Naquela altura, "A Pedra Filosofal" já estava na lista dos mais vendidos do jornal há 14 semanas, acima do recorde de três semanas para os livros juvenis na lista, estabelecido por "A Teia de Charlotte", de E.B. White, em 1952.
De lá para cá, uma grande empresa de mídia percebeu a importância de Potter, a AOL Time Warner, com a qual Rowling fechou acordo para as adaptações cinematográficas. A autora fez questão de registrar seu desejo de limitar o merchandising, ainda que essa postura não seja convincente. Mattel, Lego e Coca-Cola são todas parceiras do projeto.
Mas, nesse caso, pelo menos, a arte veio bem antes do comércio, e boa parte da atenção gerada pelo quinto romance é genuína, estimulada pela demanda real por um novo volume das aventuras.
O orçamento de promoção da Scholastic para o novo Harry Potter chegou aos US$ 3,5 milhões, provavelmente um décimo do que a Universal gastou divulgando "Hulk". E, enquanto você lê este texto, o filme está perdendo a força nas bilheterias, seu primeiro passo para o esquecimento.
Vivemos em uma cultura de entretenimento de alto orçamento na qual os maiores filmes de Hollywood saturam o mercado por uma ou duas semanas e depois desaparecem. Não há tempo suficiente para que a propaganda de boca em boca permita que um trabalho com algo de especial, mas não instantaneamente vendável, encontre audiência de massa, e, assim, por que os estúdios correriam esse risco? É mais fácil produzir em série as fórmulas comprovadas e as franquias, mais estúpidas a cada novo título.
Por isso "Matrix", aquele surto raro e inesperado de originalidade, gera "Matrix Reloaded", uma pálida cópia carbono. A maquinaria que gera esses filmes descartáveis é a antítese da trajetória de carreira da série Harry Potter.
Enquanto o primeiro romance continua entre os mais vendidos, o novo volume é tido como prova do crescimento artístico da autora, e não como um esforço mecânico para atender o mercado.


Tradução Paulo Migliacci


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