UOL


São Paulo, segunda-feira, 14 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Entre o Canal da Mancha e o Atlântico

O que separa a Inglaterra (ou Reino Unido ou Grã-Bretanha) da Europa sempre foi mais que o Canal da Mancha. Tanto a impressão, comum em ambos os lados do canal, de que, para os ilhéus, este continua sendo politicamente mais largo que o Atlântico quanto a clássica piada inglesa segundo a qual o "Times" noticiara, por ocasião de uma tempestade, que o continente se encontrava isolado remetem a diferenças significativas entre os povos anglo-saxões e o resto do Ocidente.
Embora estas venham de longe, os últimos 200 anos, durante os quais os países anglo-saxões em geral não passaram pelas piores experiências dos outros europeus e americanos, a saber, ditaduras e despotismos, instabilidade e revoluções sangrentas, derrota militar e ocupação estrangeira, ajudaram a aprofundá-las. Talvez seja daí que advém uma de suas características: o fato de que os extremos ideológicos nunca seduziram mais do que uma minoria de suas populações.
Não que não haja disputa entre orientações diversas: pelo contrário. O antagonismo entre Tories e Labour ou entre republicanos e democratas ilustra-o claramente. Acontece que nos países em questão as chances que um candidato tem de se eleger aumentam conforme, distanciando-se dos extremos, ele se mostra menos doutrinário que pragmático. Há, porém, nesse quadro, uma grande exceção e uma aberração. A questão irlandesa, sob as diversas formas que assumiu, subverte qualquer generalização. Quanto à aberração, trata-se de uma instituição chamada British Broadcasting Corporation (BBC) que, no momento, está, não pela primeira vez, em conflito com o governo de seu país.
Fundada em 1922 como uma rádio emissora, ela foi por décadas a mais positiva das aberrações: uma organização midiática que, apesar de pública, não deixava de ser competente ou confiável. Financiada pelo contribuinte, seu estatuto, no entanto, garante-lhe uma linha editorial independente do governo, algo que, somado à qualidade da programação não noticiosa e a seu heróico papel informativo durante a Segunda Guerra (quando incontáveis habitantes da Europa ocupada arriscavam o pescoço para ouvir suas emissões), permitiu-lhe acumular um invejável capital de credibilidade e prestígio.
Se a crise entre BBC e a administração Blair veio a furo devido a um repórter que, respaldado numa só fonte sigilosa, acusou o governo de deturpar (com o intuito de convencer o parlamento e a opinião pública a apoiarem a recente guerra) as informações dos serviços secretos sobre as armas iraquianas de destruição maciça, faz anos que ela vinha se preparando.
Como o estatismo socializante e burocrático, que é hoje a forma padrão de governo na Europa, surgiu mais cedo naquelas ilhas do que no continente, sua vertente insular, devidamente desacreditada pela folha corrida de insucessos, foi, há mais de 20 anos, sepultada (se bem que tenha ido esperneando ao próprio enterro) por Margareth Thatcher, que cravou no coração do velho Labour (Partido Trabalhista) a estaca deliciosamente intraduzível de seu slogan vitorioso: "Labour doesn't work" (um trocadilho entre cujos sentidos estão o de que o Partido Trabalhista não funciona nem dá certo e o de que os trabalhistas não trabalham, apenas, digamos, atrapalham).
Os trabalhistas voltaram ao poder graças a Tony Blair que, criando um New Labour bem mais centrista (cujo sucesso eleitoral depende bastante do carisma do líder), revelou-se, além disso, o único político europeu atual digno de ser considerado um estadista. Contrapondo-se frontalmente ao antiamericanismo enraizado em sua agremiação e derrotando o esforço franco-alemão de proteger Saddam Hussein através da desestabilização do governo inglês (que parecia ser o calcanhar-de-aquiles da coalizão anglo-americano-australiana), ele acabou entrando em rota de colisão com a BBC.
Essa organização não é somente o derradeiro refúgio do Old Labour. Sua autonomia, seja diante de governos eleitos, seja diante de consumidores cativos, resultou no desenvolvimento e consolidação de uma burocracia que se autoperpetua e de uma cultura institucional, que, como se poderia esperar, representa mal o que a maioria dos ingleses pensa. Mesmo assim, a emissora não teria entrado num confronto tão aberto com Blair se este não tivesse desafiado o elemento que ainda une a esquerda: seu imenso rancor.
Nos meses que precederam a invasão do Iraque a emissora (cujo viés já havia sido diagnosticado antes) adotou, contra a guerra, uma posição impossível de ser disfarçada e contribuiu para organizar os protestos. Os porta-vozes de um dos lados do debate foram privilegiados em detrimento de seus opositores. Uma vez começada a campanha militar, ela fez o que pode para exibir sob a pior das luzes as ações da coalizão, falando em atoleiros e "novo Vietnã". Depois da vitória, aceitou quase acriticamente rumores infundados como o do saque devastador do museu de Bagdá. A BBC, em suma, contrariando seu estatuto, tomou partido e patenteou que, mais do que uma instituição jornalística, é também um partido político.
Nada disso seria demasiado importante se a Inglaterra, a única potência capaz de encabeçar uma coalizão de nações européias que não se sentem à vontade num continente dirigido pela parceria Berlim-Paris, não estivesse internamente dividida entre os que vêem seu país como uma ponte unindo o Ocidente e aqueles que, abolindo de vez o Canal da Mancha, prefeririam fazer do Atlântico uma fronteira intransponível.


Texto Anterior: Dança: Cisne Negro se expõe ao novo com esmero
Próximo Texto: Panorâmica - Teatro: Peça inédita "Escândalo" será lida amanhã
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.