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NELSON ASCHER
Entre o Canal da Mancha e o Atlântico
O que separa a Inglaterra
(ou Reino Unido ou Grã-Bretanha) da Europa sempre foi
mais que o Canal da Mancha.
Tanto a impressão, comum em
ambos os lados do canal, de que,
para os ilhéus, este continua sendo politicamente mais largo que o
Atlântico quanto a clássica piada
inglesa segundo a qual o "Times"
noticiara, por ocasião de uma
tempestade, que o continente se
encontrava isolado remetem a diferenças significativas entre os povos anglo-saxões e o resto do Ocidente.
Embora estas venham de longe,
os últimos 200 anos, durante os
quais os países anglo-saxões em
geral não passaram pelas piores
experiências dos outros europeus
e americanos, a saber, ditaduras e
despotismos, instabilidade e revoluções sangrentas, derrota militar
e ocupação estrangeira, ajudaram a aprofundá-las. Talvez seja
daí que advém uma de suas características: o fato de que os extremos ideológicos nunca seduziram mais do que uma minoria de
suas populações.
Não que não haja disputa entre
orientações diversas: pelo contrário. O antagonismo entre Tories e
Labour ou entre republicanos e
democratas ilustra-o claramente.
Acontece que nos países em questão as chances que um candidato
tem de se eleger aumentam conforme, distanciando-se dos extremos, ele se mostra menos doutrinário que pragmático. Há, porém, nesse quadro, uma grande
exceção e uma aberração. A questão irlandesa, sob as diversas formas que assumiu, subverte qualquer generalização. Quanto à
aberração, trata-se de uma instituição chamada British Broadcasting Corporation (BBC) que,
no momento, está, não pela primeira vez, em conflito com o governo de seu país.
Fundada em 1922 como uma
rádio emissora, ela foi por décadas a mais positiva das aberrações: uma organização midiática
que, apesar de pública, não deixava de ser competente ou confiável. Financiada pelo contribuinte,
seu estatuto, no entanto, garante-lhe uma linha editorial independente do governo, algo que, somado à qualidade da programação
não noticiosa e a seu heróico papel informativo durante a Segunda Guerra (quando incontáveis
habitantes da Europa ocupada
arriscavam o pescoço para ouvir
suas emissões), permitiu-lhe acumular um invejável capital de
credibilidade e prestígio.
Se a crise entre BBC e a administração Blair veio a furo devido
a um repórter que, respaldado
numa só fonte sigilosa, acusou o
governo de deturpar (com o intuito de convencer o parlamento e a
opinião pública a apoiarem a recente guerra) as informações dos
serviços secretos sobre as armas
iraquianas de destruição maciça,
faz anos que ela vinha se preparando.
Como o estatismo socializante e
burocrático, que é hoje a forma
padrão de governo na Europa,
surgiu mais cedo naquelas ilhas
do que no continente, sua vertente insular, devidamente desacreditada pela folha corrida de insucessos, foi, há mais de 20 anos, sepultada (se bem que tenha ido esperneando ao próprio enterro)
por Margareth Thatcher, que cravou no coração do velho Labour
(Partido Trabalhista) a estaca deliciosamente intraduzível de seu
slogan vitorioso: "Labour doesn't
work" (um trocadilho entre cujos
sentidos estão o de que o Partido
Trabalhista não funciona nem dá
certo e o de que os trabalhistas
não trabalham, apenas, digamos,
atrapalham).
Os trabalhistas voltaram ao poder graças a Tony Blair que,
criando um New Labour bem
mais centrista (cujo sucesso eleitoral depende bastante do carisma do líder), revelou-se, além disso, o único político europeu atual
digno de ser considerado um estadista. Contrapondo-se frontalmente ao antiamericanismo
enraizado em sua agremiação e
derrotando o esforço franco-alemão de proteger Saddam Hussein
através da desestabilização do governo inglês (que parecia ser o
calcanhar-de-aquiles da coalizão
anglo-americano-australiana),
ele acabou entrando em rota de
colisão com a BBC.
Essa organização não é somente o derradeiro refúgio do Old Labour. Sua autonomia, seja diante
de governos eleitos, seja diante de
consumidores cativos, resultou no
desenvolvimento e consolidação
de uma burocracia que se autoperpetua e de uma cultura institucional, que, como se poderia esperar, representa mal o que a
maioria dos ingleses pensa. Mesmo assim, a emissora não teria
entrado num confronto tão aberto com Blair se este não tivesse desafiado o elemento que ainda une
a esquerda: seu imenso rancor.
Nos meses que precederam a invasão do Iraque a emissora (cujo
viés já havia sido diagnosticado
antes) adotou, contra a guerra,
uma posição impossível de ser
disfarçada e contribuiu para organizar os protestos. Os porta-vozes de um dos lados do debate foram privilegiados em detrimento
de seus opositores. Uma vez começada a campanha militar, ela
fez o que pode para exibir sob a
pior das luzes as ações da coalizão, falando em atoleiros e "novo
Vietnã". Depois da vitória, aceitou quase acriticamente rumores
infundados como o do saque devastador do museu de Bagdá. A
BBC, em suma, contrariando seu
estatuto, tomou partido e patenteou que, mais do que uma instituição jornalística, é também um
partido político.
Nada disso seria demasiado importante se a Inglaterra, a única
potência capaz de encabeçar uma
coalizão de nações européias que
não se sentem à vontade num
continente dirigido pela parceria
Berlim-Paris, não estivesse internamente dividida entre os que
vêem seu país como uma ponte
unindo o Ocidente e aqueles que,
abolindo de vez o Canal da Mancha, prefeririam fazer do Atlântico uma fronteira intransponível.
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