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Crítica/romance
Marroquino cria painel de desajustados no mundo islâmico
CRÍTICO DA FOLHA
"É intolerável que um
doente que se dirige aos hospitais do
Estado seja abandonado porque o hospital está sem recursos. (...) É preciso que este país
seja salvo; está com comprometimentos demais, corrupção
demais, injustiça demais e desigualdades."
Tirado do contexto, esta frase parece talhada para qualquer
país da chamada periferia do
capitalismo. Como o Brasil, digamos. Mas, sabendo que ela é
proferida por um "recrutador",
um homem sequioso por convencer o herói a lutar ao lado de
organizações islâmicas contra
os estrangeiros infiéis, então
não temos dúvida de que estamos lidando com o contexto
muçulmano.
Nesse cenário, a corrupção
de Estado é o outro lado da
moeda do terrorismo religioso;
a opressão convive com uma
cultura milenar; a pobreza e a
falta de perspectivas levam milhares de jovens a sonhar com
outras realidades, que podem
estar do outro lado do Mediterrâneo, a poucas dezenas de quilômetros de distância.
Pois, neste novo romance do
escritor marroquino de expressão francesa Tahar Ben Jelloun, estamos no Marrocos.
Em um dia claro, o herói Azel
pode avistar a costa da Espanha. Com 20 e poucos anos,
formado em direito, mas sem
nenhuma esperança de emprego formal, Azel já tentou entrar
ilegalmente na Europa, mas o
máximo que conseguiu foi ser
extorquido pelo passador.
Teve melhor sorte do que seu
amigo Noureddine, pelo menos, que se afogou quando tentava cruzar o estreito de Gibraltar. A vida de Azel muda quando conhece Miguel, rico galerista espanhol, íntimo da corte
de Hassan 2º (o romance se
passa na década de 90). Apaixonado pelo belo marroquino,
Miguel o apadrinha, arranja-lhe emprego, ajuda a família, leva-o à Espanha.
Contradições
Mas a felicidade não sorri a
Azel. Dividido entre os conceitos tradicionais e os costumes
modernos, incapaz de desfazer
o nó de sua sexualidade ambígua, o herói é um poço de contradições, que terminam por
selar seu destino.
De certo modo, Azel, cujo nome -Azz el Arab- quer dizer o
orgulho dos árabes, funciona
como mote para Ben Jelloun
expor a crise de seu país natal.
Embora o ponto de vista de
Azel seja o principal, o romance
é tecido por meio da perspectiva de vários personagens, como
Kenza, a irmã de Azel, que deseja escapar ao jugo dos homens, ou a menina Malika, que
arruína a saúde descascando
camarões para uma indústria
multinacional.
Porta-vozes de desejos particulares, esses indivíduos quase
não interagem de fato entre si.
Não nos convencem no sentimento que dizem sentir pelo
outro, seja este outro irmão,
mãe ou amante. Como Azel, são
figuras com que Ben Jelloun tece seu painel dos desajustados
de um país de desajustes.
No fim, todos mantêm um
olhar para dentro de si e outro
para fora; para o que são e para
o que poderiam ser diante da
potencialidade de um mundo
que os rejeita. Como é ordinário em países de periferia, têm
de haver-se com o nacional e
com o estrangeiro. São portadores de uma cisão que precisam resolver a todo custo para
não imergirem no caos.
(MARCELO PEN)
PARTIR
Autor: Tahar Ben Jelloun
Tradução: Mônica Cristiana Corrêa
Editora: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 39 (288 págs.)
Avaliação: bom
NA INTERNET - Leia trecho
www.folha.com.br/071941
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