São Paulo, sábado, 14 de julho de 2007

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Crítica/romance

Boyd prende a atenção do leitor em seu novo thriller

Autor nascido em Gana envereda pelo romance de espionagem no livro "Fuga"

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Há algo nos autores de língua inglesa que remonta a Dickens, a Poe, a George Eliot, algo que -não importa o quanto esses escritores envolvam-se com questões de forma- os induz a forjar um compromisso com o prazer da leitura, com a necessidade de tornar a história interessante.
Essa característica é ainda mais acentuada, claro, nos romances policiais e de espionagem -uma invenção dessa literatura- como mostram os romances de Patricia Highsmith e de Graham Greene, ou as experiências mais recentes de Philip Roth e de Ian McEwan.
Não é a primeira investida de William Boyd -um dos prestigiados 20 melhores jovens romancistas britânicos da primeira seleção desse tipo feita pela revista "Granta"- na senda do thriller, mas certamente é aquela em que este escritor nascido em Gana mais se empenhou em apoiá-la em elementos que, como se diz, a tornam difícil de ser posta de lado.
Boyd soube como escolher os artifícios adequados para prender a atenção do leitor à história de Sally Gillmartin, que, descobre sua filha Ruth, é na verdade Eva Delectorskaya, uma espiã a soldo do governo britânico durante a Segunda Guerra Mundial.
Segundo Ruth, desde pequena ela ouvira a mãe contar que um dia teria ido embora, e aí a filha sentiria falta dela. Ao contrário de outras chantagens ensaiadas por mães habituais, a de Sally tinha um imenso fundo de verdade.
"Agora (...) compreendo aquele misto de medo e amargura que se escondia sob a aparente tranqüilidade da vidinha que levava -como aquele sentimento a assombrava mesmo depois de anos levando uma vida pacata de rotina imutável. Agora sei que ela sempre temeu que alguém viesse para matá-la. E tinha motivos para isso."
A frase alicia o leitor para entender as razões de Sally/Eva -razões que, William Boyd sabe perfeitamente bem, devem ser explicadas a conta-gotas, e cujas verdadeiras implicações só podem ser reveladas perto do clímax final.
Eva é contratada por um agente britânico chamado Lucas Romer em 1939. Seu trabalho consiste em infiltrar, em meio aos fatos narrados por uma agência noticiosa, notas falsas sobre o curso das hostilidades. As notas, que ganham o mundo antes de ser desmentidas, serviriam para confundir o inimigo. Com o passar do tempo, as incumbências de Eva tornam-se mais perigosas. E ela inicia um caso com Romer.
Mas a cena não é toda da espiã. Ela a divide com a filha, que narra a parte "atual" da história, nos anos 70. Ela não está apenas surpresa com a confissão da mãe e com a necessidade de "ir a campo" (há um motivo para Eva expor o passado naquela altura). Ruth tem seus próprios problemas com um pretendente iraniano e com um cunhado ligado à organização terrorista Baader-Meinhof.
A fluidez prazerosa da narrativa quase esconde o fato de ela ter outras camadas de leitura. Há uma tentativa malograda de dotá-la de profundidade existencial, sugerida pela epígrafe de Proust. E há um bem mais bem-sucedido jogo de correspondências.
Entre as possíveis correspondências está, por exemplo, a inferência de que a atividade do espião -que inclui a construção de uma identidade e a busca por falsidades que se passam por verdades- tem, afinal, muito em comum com o ofício do ficcionista.

FUGA


Autor: William Boyd
Tradução: Antônio E. de Moura Filho
Editora: Rocco
Quanto: R$ 45 (320 págs.)
Avaliação: bom



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