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Crítica/romance
Boyd prende a atenção do leitor em seu novo thriller
Autor nascido em Gana envereda pelo romance de espionagem no livro "Fuga"
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Há algo nos autores de
língua inglesa que remonta a Dickens, a
Poe, a George Eliot, algo que
-não importa o quanto esses
escritores envolvam-se com
questões de forma- os induz a
forjar um compromisso com o
prazer da leitura, com a necessidade de tornar a história interessante.
Essa característica é ainda
mais acentuada, claro, nos romances policiais e de espionagem -uma invenção dessa literatura- como mostram os romances de Patricia Highsmith
e de Graham Greene, ou as experiências mais recentes de
Philip Roth e de Ian McEwan.
Não é a primeira investida de
William Boyd -um dos prestigiados 20 melhores jovens romancistas britânicos da primeira seleção desse tipo feita
pela revista "Granta"- na senda do thriller, mas certamente
é aquela em que este escritor
nascido em Gana mais se empenhou em apoiá-la em elementos que, como se diz, a tornam difícil de ser posta de lado.
Boyd soube como escolher os
artifícios adequados para prender a atenção do leitor à história de Sally Gillmartin, que,
descobre sua filha Ruth, é na
verdade Eva Delectorskaya,
uma espiã a soldo do governo
britânico durante a Segunda
Guerra Mundial.
Segundo Ruth, desde pequena ela ouvira a mãe contar que
um dia teria ido embora, e aí a
filha sentiria falta dela. Ao contrário de outras chantagens ensaiadas por mães habituais, a de
Sally tinha um imenso fundo de
verdade.
"Agora (...) compreendo
aquele misto de medo e amargura que se escondia sob a aparente tranqüilidade da vidinha
que levava -como aquele sentimento a assombrava mesmo
depois de anos levando uma vida pacata de rotina imutável.
Agora sei que ela sempre temeu
que alguém viesse para matá-la. E tinha motivos para isso."
A frase alicia o leitor para entender as razões de Sally/Eva
-razões que, William Boyd sabe perfeitamente bem, devem
ser explicadas a conta-gotas, e
cujas verdadeiras implicações
só podem ser reveladas perto
do clímax final.
Eva é contratada por um
agente britânico chamado Lucas Romer em 1939. Seu trabalho consiste em infiltrar, em
meio aos fatos narrados por
uma agência noticiosa, notas
falsas sobre o curso das hostilidades. As notas, que ganham o
mundo antes de ser desmentidas, serviriam para confundir o
inimigo. Com o passar do tempo, as incumbências de Eva tornam-se mais perigosas. E ela
inicia um caso com Romer.
Mas a cena não é toda da espiã. Ela a divide com a filha, que
narra a parte "atual" da história, nos anos 70. Ela não está
apenas surpresa com a confissão da mãe e com a necessidade
de "ir a campo" (há um motivo
para Eva expor o passado naquela altura). Ruth tem seus
próprios problemas com um
pretendente iraniano e com um
cunhado ligado à organização
terrorista Baader-Meinhof.
A fluidez prazerosa da narrativa quase esconde o fato de ela
ter outras camadas de leitura.
Há uma tentativa malograda de
dotá-la de profundidade existencial, sugerida pela epígrafe
de Proust. E há um bem mais
bem-sucedido jogo de correspondências.
Entre as possíveis correspondências está, por exemplo,
a inferência de que a atividade
do espião -que inclui a construção de uma identidade e a
busca por falsidades que se passam por verdades- tem, afinal,
muito em comum com o ofício
do ficcionista.
FUGA
Autor: William Boyd
Tradução: Antônio E. de Moura Filho
Editora: Rocco
Quanto: R$ 45 (320 págs.)
Avaliação: bom
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