|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Paulinho da Viola e nosso uso do tempo
Estreou na semana passada, em São Paulo, "Paulinho
da Viola: Meu Tempo É Hoje",
documentário com direção de
Izabel Jaguaribe e roteiro de Zuenir Ventura. O filme é um encanto.
Claro, Paulinho da Viola é contagiante: basta que comece a tocar e a cantar uma de suas músicas para que sejamos tomados pela vontade de sentar na roda com
a Velha-Guarda da Portela.
Mas não é só isso: Zuenir Ventura conseguiu um pequeno prodígio. Inventou um roteiro em
que a fala é escassa e são poucos
os momentos em que assistimos
às andanças de Paulinho pela vida (seu aniversário, alguns encontros, seus hobbies, seu passear
pelas ruas). Em suma, Zuenir deixou Paulinho cantar e, apesar
disso (ou talvez graças a isso), ele
nos oferece, com "Paulinho da
Viola", uma meditação sobre
nosso uso do tempo.
Um conhecido, antes de assistir
ao filme, comentou assim a frase
do título "Meu Tempo É Hoje":
"O Paulinho é grande, mas não
entendo direito por que seu tempo seria hoje. Saiu um CD dele recentemente?". Até então não me
ocorrera que o título pudesse ser
entendido como uma declaração
triunfalista, do tipo "cheguei ao
meu auge, agora é minha vez,
meu momento". Esse equívoco
(pouco importa que fosse previsto
ou não por Zuenir e Izabel) é providencial: ele ilustra a distância
entre a experiência do tempo que
é comum na modernidade e a
proposta de "Paulinho da Viola"
(e de Paulinho sem aspas).
Na experiência moderna do
tempo (e no mal-entendido de
meu conhecido), o título significaria que o presente vale, por exemplo, como ponto culiminante de
uma história de sucesso. Nessa
ótica, o instante atual é sempre
apenas uma etapa: ele deve sua
relevância ao que vem antes e ao
que vem depois.
Ora, no filme, o título sugere, ao
contrário, que é possível e importa viver a vida no presente. "Meu
Tempo É Hoje" significa "vivo
agora", ou seja, estou no que eu
faço.
A experiência moderna banal
apaga o presente. Vivemos, geralmente, em trânsito entre um passado que é objeto de saudade (ou,
pior, que vale como currículo para confirmar nossas potencialidades futuras) e um anseio pelos
dias melhores que virão. O presente não tem, em nossa cultura,
uma dignidade própria; ele é a
fração de segundo em que o atleta
de salto triplo pisa na areia para
impulsionar-se e pular mais longe.
Paulinho, ao contrário, repete
que ele não tem saudade: o passado está dentro dele. As lembranças não servem para lamentar
perdas ou para alimentar sonhos:
são o patrimônio que enriquece a
experiência que importa, a do
presente.
Paulinho tem outros lazeres,
além da música. Um deles é restaurar carros velhos. Decepção de
sua mulher: um Karman-Ghia
vermelho que já esteve quase
pronto para ser dirigido fica sob
uma lona poeirenta, ainda aos
pedaços. Paulinho não tem pressa: seu hobby não é para passar
noites em claro ou fins de semana
seguidos anelando pelo momento
em que, vitória final, o carro estará pronto e como novo. Seu prazer é arrumar carros velhos, não
dirigi-los restaurados. O Karman-Ghia é o carro de Penélope;
quem sabe Paulinho o desmonte
a cada noite para remontá-lo um
pouco no dia seguinte. E a comparação só valeria mesmo se Penélope tivesse desfeito sua famosa
tela não para enganar os pretendentes na espera da volta do marido, mas porque ela gostava de
tecer.
Outro hobby de Paulinho é reparar relógios. Não nos é estranho, pois ele aparece, no filme, como um terapeuta de nossa relação doente com o tempo, de nossa
incapacidade de reconhecer qual
é a hora de nossa vida.
Os documentários que têm, como é frequente, uma função de
denúncia representam a face crítica de nossos sonhos, enquanto
(generalizando) o cinema hollywoodiano nos seduz com devaneios de aventuras extraordinárias, distantes no espaço e no tempo. Nessa oposição entre o que deve mudar e o charme do que poderia ser, ambos os termos valem
pela promessa ("escapista" ou engajada que seja) de um futuro ou
de um alhures diferentes de nosso
cotidiano.
Obviamente, o anseio de outra
coisa é necessário para transformar o mundo. Mas talvez nenhuma mudança valha a pena se não
pudermos curar uma alienação
fundamental de nossa subjetividade: a incapacidade de viver no
presente. O que adianta um futuro melhor se, quando ele chegar,
só saberemos matutar sobre mais
um tempo vindouro?
Por sorte nossa, o filme de Zuenir e Izabel não é uma ave rara.
Nos últimos tempos, uma série de
documentários brasileiros nos
convidam a suspender o sonho e a
saborear o dia. A lista (incompleta) inclui "Futebol" (1998) e "Nelson Freire" (2003), de João Moreira Salles, "Seis Histórias Brasileiras" (2000), de Arthur Fontes,
João Moreira Salles e Izabel Jaguaribe (esse filme, infelizmente,
como "Futebol", não passou nas
salas de cinema), "Edifício Master" (2002), de Eduardo Coutinho, e agora "Paulinho da Viola".
Talvez esses filmes sejam mais
revolucionários do que denúncias
para transformar o mundo, pois
transformam a gente, apontando
a dignidade, o valor e a grandeza
possíveis da vida como ela é, na
hora em que ela acontece.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Música: The Cult "renascido" conta sua história Próximo Texto: Ninguém entende um mod Índice
|