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RODAPÉ
Terra estrangeira
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Age de Carvalho é o mais "estrangeiro" dos poetas brasileiros contemporâneos. Não apenas por ter nascido e se formado à
margem dos centros culturais do
Sudeste (que, bem ou mal, acabam atraindo intelectuais e artistas de todo país).
E não apenas por morar na Europa desde o começo dos anos 80
(inicialmente em Munique, na
Alemanha, atualmente em Viena,
na Áustria, onde trabalha como
designer gráfico).
O estrangeirismo de Age de
Carvalho diz respeito à natureza
áspera e hermética de sua linguagem, que não traz vestígios das
tendências dominantes de nossa
poesia modernista ou pós-modernista (lirismo e coloquialidade, rigor construtivo e ironia metalingüística -valores nem sempre conquistados, mas em geral
almejados).
Uma excelente amostra dessa
produção pode ser vista agora em
"Seleta", uma antologia publicada
pela editora Paka-Tatu, de Belém
(cidade natal do escritor), reunindo poemas de seus quatro livros
anteriores: "Arquitetura dos Ossos" (1980), "Arena, Areia"
(1986), "Pedra-um" (1990) e "Caveira 41" (2003).
Organizada pelo próprio Age de
Carvalho, essa seleção ressalta algumas características marcantes:
imagens impregnadas de traços
biográficos (pessoas, objetos, lugares) surgindo em versos sincopados e palavras justapostas sem
conectivos sintáticos; uma espécie
de religiosidade sem esperança de
redenção, um tom confessional
que transforma toda experiência
poética num aceno de despedida
para aquilo que está destinado a
desaparecer:
"Negro, forceja reconhecer a laje/ marcada, conspira contra a
cripta:/ véspera do nome,/ véstia
da paixão toda paixão,/ aqui/
cresce uma cruz na última palavra-// A ofertada, irrepetida, ir-/
recusável".
O caráter impenetrável de algumas referências a pessoas e situações é reforçado pela decomposição de palavras, por neologismos
e estrangeirismos. Mas em nenhum momento essas violações
da língua se transformam numa
finalidade em si mesma, pois a
poesia de Age de Carvalho parece
obedecer a um outro princípio de
composição.
Por trás de seu hermetismo
(que assim se coloca como conseqüência, e não como meta) parece
haver um trabalho de reconstituição de conteúdos da memória
que, de tão entranhados ou recalcados, exigem um grande esforço
de expressão, de busca de uma
linguagem que esteja à altura daquilo que resgata.
Nesse sentido, as remissões à
poesia de Georg Trakl ("Me-/ dita,
a/ branca/ sombra da neve,/ o nevo/ desse silêncio, fendido:
Trakl") e Paul Celan se devem
tanto a sua imersão num ambiente de língua alemã quanto à identificação com um traço marcante
desses dois poetas: a vivência de
traumas históricos e familiares
transformando cada lembrança e
cada palavra numa aresta pontiaguda, que fere quando é tocada.
Naturalmente, aquilo que em
Trakl e Celan se deve a episódios
ligados às duas guerras mundiais
é interiorizado, no caso de Age de
Carvalho, em imagens que surgem como lapsos da memória
pessoal e que nos dizem sempre
de algo que revive na poesia, mas
que está destinado a morrer -como no belíssimo "Canto de Galo":
"Na madrugada dormida,/ onde a
chama/ (agora apagada) do dia/
reclama o fogo das manhãs,/ um
galo canta/ (apodrecendo rígido
ao passar das horas)".
A paisagem calcinada de Belém
e os quintais da infância estão onipresentes, mas o registro nunca é
nostálgico, pois compõe justamente uma "arquitetura dos ossos", conforme o título de um
poema feito de várias seções e que
é uma espécie de pedra fundamental de Age de Carvalho: "Tudo/ se dá sob os reinos da invenção: morro/ hoje, nunca concluído (uma escultura na areia),/ sem
ruído;/ amanhã,/ como a milhares
de anos, estarei vivo/ (os cabelos
num novo incêndio, o corpo/ inconsútil no espaço)/ e, recomeçado,/ serei inacabado e breve".
Enfim, esse "turista terminal"
(conforme verso de "Caveira 41"
excluído de "Seleta") transforma
aquilo que lhe é mais familiar -a
morte de uma cadela, a dor da separação- em emblemas do estranhamento radical e de seu auto-exílio geográfico e poético.
Seleta
Autor: Age de Carvalho
Editora: Paka-Tatu (tel. 0/xx/ 91/212-7308)
Quanto: R$ 17 (88 págs.)
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