São Paulo, sábado, 14 de agosto de 2004

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RODAPÉ

Terra estrangeira

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Age de Carvalho é o mais "estrangeiro" dos poetas brasileiros contemporâneos. Não apenas por ter nascido e se formado à margem dos centros culturais do Sudeste (que, bem ou mal, acabam atraindo intelectuais e artistas de todo país).
E não apenas por morar na Europa desde o começo dos anos 80 (inicialmente em Munique, na Alemanha, atualmente em Viena, na Áustria, onde trabalha como designer gráfico).
O estrangeirismo de Age de Carvalho diz respeito à natureza áspera e hermética de sua linguagem, que não traz vestígios das tendências dominantes de nossa poesia modernista ou pós-modernista (lirismo e coloquialidade, rigor construtivo e ironia metalingüística -valores nem sempre conquistados, mas em geral almejados).
Uma excelente amostra dessa produção pode ser vista agora em "Seleta", uma antologia publicada pela editora Paka-Tatu, de Belém (cidade natal do escritor), reunindo poemas de seus quatro livros anteriores: "Arquitetura dos Ossos" (1980), "Arena, Areia" (1986), "Pedra-um" (1990) e "Caveira 41" (2003).
Organizada pelo próprio Age de Carvalho, essa seleção ressalta algumas características marcantes: imagens impregnadas de traços biográficos (pessoas, objetos, lugares) surgindo em versos sincopados e palavras justapostas sem conectivos sintáticos; uma espécie de religiosidade sem esperança de redenção, um tom confessional que transforma toda experiência poética num aceno de despedida para aquilo que está destinado a desaparecer:
"Negro, forceja reconhecer a laje/ marcada, conspira contra a cripta:/ véspera do nome,/ véstia da paixão toda paixão,/ aqui/ cresce uma cruz na última palavra-// A ofertada, irrepetida, ir-/ recusável".
O caráter impenetrável de algumas referências a pessoas e situações é reforçado pela decomposição de palavras, por neologismos e estrangeirismos. Mas em nenhum momento essas violações da língua se transformam numa finalidade em si mesma, pois a poesia de Age de Carvalho parece obedecer a um outro princípio de composição.
Por trás de seu hermetismo (que assim se coloca como conseqüência, e não como meta) parece haver um trabalho de reconstituição de conteúdos da memória que, de tão entranhados ou recalcados, exigem um grande esforço de expressão, de busca de uma linguagem que esteja à altura daquilo que resgata.
Nesse sentido, as remissões à poesia de Georg Trakl ("Me-/ dita, a/ branca/ sombra da neve,/ o nevo/ desse silêncio, fendido: Trakl") e Paul Celan se devem tanto a sua imersão num ambiente de língua alemã quanto à identificação com um traço marcante desses dois poetas: a vivência de traumas históricos e familiares transformando cada lembrança e cada palavra numa aresta pontiaguda, que fere quando é tocada.
Naturalmente, aquilo que em Trakl e Celan se deve a episódios ligados às duas guerras mundiais é interiorizado, no caso de Age de Carvalho, em imagens que surgem como lapsos da memória pessoal e que nos dizem sempre de algo que revive na poesia, mas que está destinado a morrer -como no belíssimo "Canto de Galo": "Na madrugada dormida,/ onde a chama/ (agora apagada) do dia/ reclama o fogo das manhãs,/ um galo canta/ (apodrecendo rígido ao passar das horas)".
A paisagem calcinada de Belém e os quintais da infância estão onipresentes, mas o registro nunca é nostálgico, pois compõe justamente uma "arquitetura dos ossos", conforme o título de um poema feito de várias seções e que é uma espécie de pedra fundamental de Age de Carvalho: "Tudo/ se dá sob os reinos da invenção: morro/ hoje, nunca concluído (uma escultura na areia),/ sem ruído;/ amanhã,/ como a milhares de anos, estarei vivo/ (os cabelos num novo incêndio, o corpo/ inconsútil no espaço)/ e, recomeçado,/ serei inacabado e breve".
Enfim, esse "turista terminal" (conforme verso de "Caveira 41" excluído de "Seleta") transforma aquilo que lhe é mais familiar -a morte de uma cadela, a dor da separação- em emblemas do estranhamento radical e de seu auto-exílio geográfico e poético.


Seleta
    
Autor: Age de Carvalho
Editora: Paka-Tatu (tel. 0/xx/ 91/212-7308)
Quanto: R$ 17 (88 págs.)



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